domingo, 20 de dezembro de 2009

De fogo é teu coração

Apreciador dos clássicos gregos, tenho mais de uma tradução de comédias e tragédias gregas como, por exemplo, da tragédia Antígona, de Sófocles, assim como tenho várias versões e traduções da Bíblia Sagrada. É agradável e muito proveitoso, mormente quando não se tem conhecimento da língua original, comparar, fundado no bom conhecimento do Português, as muitas versões e traduções de determinada obra. Traduttore, traditore, o tradutor é muitas vezes um traidor, que deturpa, voluntária ou involuntariamente, o pensamento do autor.

Aqui um exemplo. Fica, a meu ver, bem demonstrada essa importância quando comparamos a tradução da Antígona que foi feita por Donaldo Schüler com a tradução de Mário da Gama Kury, inquestionavelmente dois helenistas de peso. Um deles dois (ou até mesmo ambos) teria traído, de certo modo, o pensamento de Sófocles? Não sei. Talvez, sim; talvez, não. Qual das traduções é inteiramente fiel ou, em outras palavras, menos infiel ao original? Sei lá! Desnecessário dizer que somente a consulta ao texto original, por quem tenha sólido conhecimento do Grego, poderá responder a tais indagações com responsabilidade e segurança. Com a palavra, portanto, os helenistas, para que falem ex cathedra. Nem quero jamais ouvir o ne sutor ultra crepidam, de Apeles.

Não é meu objetivo aqui pôr ou retirar defeito desta ou daquela tradução. Quero tão somente ressaltar a importância de se conhecer, quando disponíveis, várias versões e traduções de um mesmo texto de língua estrangeira, dado o enriquecimento intelectual que isso nos traz, até porque, todos o sabemos, existem várias maneiras de se falar e escrever de forma escorreita determinada afirmação ou negação. Ambas as traduções referidas são boas e importantes. Posso afirmar, contudo, que, para mim, ressalvado o alto grau de subjetividade nessa apreciação se encerra, é mais linda e mais poética a tradução de Donaldo Schüler, não obstante a tradução de Mário da Gama Kury, que foi feita em 1970, já esteja na 15.ª edição pela Jorge Zahar Editor, do Rio de Janeiro.


À guisa de amostra, aí vai um trecho do tenso diálogo entre as irmãs Antígona e Ismene, nas duas traduções: Diz, a meu ver, com muita poesia, a tradução de Schüler: “De fogo é teu coração em atos que me gelam” – disse Ismene. “Fala, peço-te! Muito mais odiosa me serás calada. Declara tudo a todos” – dissera Antígona (Antígona, 86-88). E, sobremaneira diferente, a de Gama Kury: “Não faças isso! Denuncia-os! Se calares, se não contares minhas intenções a todos, meu ódio contra ti será maior ainda!” – disse Antígona. “Ferve o teu coração pelo que faz gelar!” – respondeu Ismene (Antígona, 95-98).

Os três versos da tradução de Donaldo Schüler se transformaram em quatro, na tradução de Mário da Gama Kury. Quem deles foi inteiramente fiel, ou menos infiel, ao original? Sei lá! Não tive acesso ao original nem tenho o suficiente conhecimento de Grego para dizê-lo. Que o digam os doutos helenistas, com a autoridade que têm sobre o assunto. Contudo, que há diferença, há; isso ninguém pode objetivamente negar. E, demais disso, conquanto lá prevaleça a objetividade e aqui a subjetividade, a tradução de Schüler é mais linda, mais poética. “De fogo é teu coração em atos que me gelam” é mais poético e mais bonito, do que “ferve o teu coração pelo que faz gelar!”, da mesma forma que “muito mais odiosa me serás calada” é mais bonito, tem mais poesia do que “se calares, meu ódio contra ti será maior ainda”. Eu acho, mas – repito – aqui estamos em seara altamente subjetiva. Vale a pena (“paga pena”, como diria Machado de Assis) apreciar as duas e mais outras traduções.

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

O macaco sem pelos e sua fêmea natural


Resolvi reler Como Tratar as Mulheres, de William Camus, traduzido do original Comment s’Accomoder des Femmes por C. Luz e publicado pela Editora Artenova S. A., a qual, salvo engano, deixou de existir. Comprei-o em maio de 1978 e li com avidez, recém-saído da adolescência, com exacerbada curiosidade sobre sexo. Depois o esqueci, por quase trinta anos, entre os muitos outros livros que possuo, acudindo-me somente agora a ideia da releitura. É muito agradável e altamente proveitoso, naturalmente com visão diferenciada pela formação universitária e a experiência de vida adquirida, reler agora os livros que li há lustros e décadas.

Como Tratar as Mulheres é uma obra interessante, que ensina a amar e admirar a mulher, muito embora uma leitura desavisada possa fazer parecer o contrário, por ser entremeado de rasgos espirituosos, sem embargo do resgate histórico-científico da evolução dos humanos ao longo dos tempos. É um livro sério, mas escrito de forma brincalhona, sem a sisudez.

São 199 páginas e seis capítulos, cada um deles começando com epígrafe e terminando, da mesma forma, com um pensamento filosófico. O primeiro tem como epígrafe o pensamento: “Estamos quase acordando quando sonhamos que estamos sonhando.” E termina com este, de Tristan Bernard: “Os otimistas e os pessimistas têm um defeito em comum: têm medo da verdade.” William Camus é, sem dúvida, um baita brincalhão que faz questão de registrar, expressa e solenemente, que não é misógino.

Começa a vivacidade já no primeiro parágrafo do primeiro capítulo, a que, com letras garrafais, deu o título de “Advertência”, onde ele diz solenemente: “Senhores, este livro é de vocês. Confiem-no a sua companheira e perderão imediatamente as vantagens que dele podem retirar.” Logo mais à frente, no mesmo capítulo, dispara: “O homem é simplesmente um macaco sem pelos, a mulher é a sua fêmea natural.” E, para não fechar diferentemente, no último parágrafo do último capítulo conclui de forma grave, mas sem abrir mão da ironia tão peculiar ao longo da obra: “Conscientes de nossas possibilidades evolutivas momentâneas, continuemos então a viver como macacos superiores; o mais difícil será persuadir nossa fêmea que ela é uma macaca.” É, de fato, um gozador!

Isso aqui, contudo, não é resenha: é uma crônica simplória com que busco homenagear as mulheres, expressando o carinho, respeito e admiração que sempre tive pela nossa fêmea natural. Quero também, como homenagem, declinar a principal razão da releitura. É que na bela crônica “Chris não está no Google”, meu amigo Guilherme José Purvin de Figueiredo, ao evocar episódio de 26 de março de 1977, no último parágrafo, faz sobre a moça a quem chama de “musa da esquerda na São Francisco”, uma afirmação que me lembrou algo dito no livro.

Guilherme Purvin diz, brincalhonamente: “Naquela manhã aprendi muita coisa, menos a dar um beijo na Chris. Na verdade, o Umberto, o Tatuí e o Marcelo também não. Azar o nosso, pois na reunião seguinte ela já namorava um alienado frequentador da Atlética. Resumindo: O quadro de Dom Pedro II, assinado por Benedito Calixto, está desaparecido. Assim como a Chris, que sequer aparece no Google. Esperava identificá-la como alguma pesquisadora gorda, descabelada e pretensiosa, com os dentes amarelos de nicotina, falando de Joyce e Proust. Deve ter se casado com algum boçal, saradão e de direita. Ou, quem sabe, com o Geraldo Vandré?”

A expressão “pesquisadora gorda”, de Purvin, lembrou-me o que disse alguém identificado no livro por William Camus apenas com as iniciais O. B.: “ A única vez que um homem se sente bem com um excesso de peso é quando o constata na mulher com a qual quase se casou.” Daí resolvi reler o livro. Registro, todavia, minha discordância desse observador citado por William Camus, pois há muitas gordinhas que são lindas ao extremo.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Marabá e o concerto



Embevecido, assisti, juntamente com a Câmelha e o Samuel, nosso filhinho de quatro anos, em meio a significativo número de outros expectadores, ao mavioso e apoteótico concerto da Orquestra Sinfônica do Theatro da Paz, realizado sábado, dia 12 de dezembro de 2009, na Praça Duque de Caxias, em frente ao Palacete “Augusto Dias”, sede da Câmara Municipal de Marabá. Foi a louvável e muito feliz iniciativa do Prof. Melquíades Justiano da Silva, Secretário Municipal de Cultura, que nos presenteou a todos com a vinda da orquestra pela primeira vez a Marabá, para dar início à programação natalina de 2009, com apresentação pública de clássico e riquíssimo concerto. O projeto “Pará Sinfônico – A Orquestra nos Municípios” chegou a Marabá.

Cheguei, involuntariamente, atrasado e não pude assistir à sinfonia O Guarani, obra imortal de Carlos Gomes, o paulista a quem o Pará, gentil e auspiciosamente, acolheu, em 1895, infelizmente já no fim da vida, fazendo-o diretor do Conservatório de Música do Pará, por ato de Lauro Sodré, então governador do Estado. Assisti, contudo, ao Bolero de Ravel e a outras obras memoráveis da arte musical, sem dúvida, de igual valor. Gostei. Achei o máximo. Como se diz na gíria: Arrasaram!


Interessante e digno de nota foi o gesto do maestro Enaldo Oliveira, que é doutor em Regência de Orquestra, quando se dirigiu à plateia, mais ou menos ao meio do concerto, para dizer do seu amor ao rio Tocantins, como filho da vizinha cidade de Tucuruí, e também para incentivar os presentes a desenvolverem a vocação para a música, pois a música, de forma gratificante, o levou a conhecer o mundo.

Marabá, que é berço de cultura poética a começar pelo nome, terra dos poetas Frederico Morbach, Aziz Mutran Filho e Ademir Braz, dentre tantos outros intelectuais ilustres, mas injustamente desamparados e esquecidos, há muito faz jus a iniciativas simples, mas de envergadura e valor inexprimível, como esta. É preciso, com acuidade, vontade bem-agradecida e firmeza de propósitos, sacudir o marasmo e rasgar o véu da inércia, quando não do descaso, que de forma funesta vêm, respectivamente, imobilizando instituições e encobrindo pessoas de nossa cidade.

É preciso valorizar o nosso intelectual, a nossa cultura, o nosso folclore, as nossas tradições, o nosso povo. Marabá, que já nasceu grande e rica, coberta de belezas naturais e com vocação inolvidável para o progresso, precisa disso!

Ao enlevo da sinfonia, povoaram-me a mente pessoas e amigos ilustres ligados à poesia, à musica e outras formas de cultura (alguns vivos, outros já falecidos), como além dos já citados, faço questão de nomear Guilherme José Purvin de Figueiredo, Luz Marina de Alcântara e Waldemar Henrique da Costa Pereira. Destes, os dois primeiros são meus amigos do mundo virtual (a Luz Marina, aliás, conheço pessoalmente desde 1981); o terceiro e último, é o maestro-símbolo paraense, de renome internacional, a quem não tive a oportunidade de conhecer.

Luz Marina é insigne educadora de artes e música, de Goiânia, Estado de Goiás, membro de academia de letras e artes, viva e galhardamente reconhecida pelo seu Estado; Guilherme Purvin, doutor em Direito pela Universidade de São Paulo e professor universitário, é o atual presidente do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública (Ibap), sediado em São Paulo, e, como intelectual de refinado bom gosto, muito fala das músicas preferidas, artistas, discos e cedês, nas belas crônicas que escreve; Waldemar Henrique, falecido em 1995, foi intelectual paraense de primeira grandeza, membro de várias academias, maestro, escritor e compositor, dentre outras prendas, contado e decantado pelo mundo.

Dessas lembranças veio a decisão de reler o livro Waldemar Henrique: Só Deus Sabe Porque, posto imediatamente a engrossar o volume de obras que estou lendo (tenho o hábito, não sei se bom ou ruim, de ler vários livros ao mesmo tempo). O exemplar que possuo é da edição de luxo, comemorativa do 84º aniversário de Waldemar Henrique, publicada pela Fundação Cultural do Pará “Tancredo Neves”, em 1989, que comprei em 1990, li e agora estou relendo.

Para encerrar a crônica, estas palavras de Luís da Câmara Cascudo: “Waldemar, enquanto você estiver na terra, falta um anjo no céu!”. Este é o Pará que eu amo e deve ser divulgado: Pará sinfônico, Pará cultural, Pará do bem!

domingo, 6 de dezembro de 2009

A Desejada



Terminei de ler Odes de Anacreonte, na tradução de Almeida Cousin. Li com a devida atenção e sem abandonar inconclusa a leitura, como, impulsivamente, fizera em outras vezes. Li também A Greve do Sexo e A Revolução das Mulheres, na tradução de Mário da Gama Kury. São obras clássicas gregas. A primeira é composta de poemas (as odes gregas eram poesia para ser cantada) cuja autoria atribui-se a Anacreonte, não obstante essa autoria seja muito discutida entre os estudiosos; as duas últimas são comédias e foram escritas pelo comediógrafo Aristófanes, quatro séculos antes de Cristo.

São obras que registram – de forma crítica, linda e muito sábia – a filosofia, a mitologia, os costumes e as tradições do provo grego, assuntos pelos quais sempre nutri verdadeira paixão. A Greve do Sexo e A Revolução das Mulheres têm algumas passagens de linguagem erótica e, a depender da tradução e da visão pudibunda de quem as lê, podem até ser consideradas comédias obscenas, muito embora de obscenidade não se trate, pois combatem, com beleza singular e de forma sobremodo contundente, o preconceito contra a mulher, a guerra, a malversação do dinheiro público, a transformação do Estado em cabides de emprego, dentre outras coisas do gênero.


À guisa de exemplo (pois esse texto não é resenha), aí vai um pouco da fala de uma das personagens de A Greve do Sexo, no combate ao preconceito contra a mulher: “Vocês não crêem que eu possa dar bons conselhos à cidade? Não é crime ter nascido mulher, e o sexo não me impede de ter ideias melhores que as que andam por aí.”

Odes de Anacreonte canta, além de muitos episódios da mitologia grega, o amor sensual casto e o pervertido, a celebração da beleza e da graça feminina, o vinho e assim por diante. De rara beleza e significado mitológico, por exemplo, é a ode XX da tradução de Almeida Cousin, intitulada “A Desejada”.

Essa ode fala do abuso sexual de que foi vítima Progne, filha de Pândion, rei de Atenas, perpetrado pelo cunhado dela, Tereu, rei da Trácia e marido de Filomena, o qual, depois de abusar da cunhada, impiedosamente a encarcerou e lhe cortou a língua, para encobrir o nefando crime que cometera. Mas não trata somente disso. Expressa e canta a admiração apaixonada do poeta pela mulher a quem deseja e homenageia.


Eis o belo poema, pois vale a pena transcrever: “Em Frígia, a filha de Tântalo,/ Niobe, petrificou-se!/ E Progne, a filha de Pândion/ Em nova andorinha alou-se!/ Ah! eu, se poder tivera/ De ter mil formas e faces,/ Quisera ser teu espelho,/ A fim de que tu me olhasses!/ Quisera ser teu vestido/ A fim de que me trouxesses;/ Quisera ser água pura,/ Que o corpo a lavar lhe desses.../ Quisera tornar-me arômato,/ A fim de que mulher, te ungisse.../ Que eu fosse o véu que os teus seios,/ Cioso, a apertar, cobrisse.../ De pérola em teu pescoço,/ Que eu fosse o colar que usasse.../ Que eu fosse a tua sandália,/ E, ao menos, tu me pisasses!...”

O poema, no entanto, somente será bem entendido e apreciado por quem conhecer o significado mitológico dos versos “Em Frígia, a filha de Tântalo,/ Niobe, petrificou-se!/ E Progne, a filha de Pândion/ Em nova andorinha alou-se!”. E, conquanto o saiba e quisesse explicá-lo, deixo de fazê-lo, para não tornar a crônica muito longa. Fica, sem maldade da minha parte, para curiosidade do leitor que não o conheça. Outro dia. Quem sabe?

domingo, 15 de novembro de 2009

A releitura de O Rubaiyat



Acabei de reler O Rubaiyat, de Omar Khayyam, na tradução de Manuel Bandeira, obra que, dentre outras, recebi como brinde da Ediouro, em 1988 ou 1989, não sei ao certo. Na realidade, a releitura não foi de toda a obra, foi apenas da parte final, pois antes, por várias vezes, iniciara e abandonara a leitura. Desta vez, não: li a obra toda, que tem 170 pequenos poemas, todos eles, curiosamente, sem título.

São poemas filosóficos. Aliás, como ensina Manuel Bandeira, rubáyyát é o plural de rubay, que, em persa, quer dizer quadra. É gostoso de ler pelo cunho clássico de sabedoria; os versos da tradução de Bandeira, porém, não têm rima. Indisposição ou uma vontade mal-agradecida me impede momentaneamente de fazer uma análise e comentários mais profundos.

É um livro indicado pela própria editora para os cursos de Filosofia, Teologia, Sociologia, Letras, Comunicação e História e, do princípio ao fim, se caracteriza pelo agnosticismo, imediatismo e hedonismo intransigentes do poeta, que, em síntese, advoga o desapego ao saber, às coisas materiais (espirituais também), regado a bom vinho degustado na companhia de bonitas mulheres.

No poema 150, por exemplo, que é composto de duas quadras, um registro bem típico da filosofia agnóstica: “Aprendi muito, esqueci muito./ Também, e por vontade própria./ Em minha mente cada coisa/ Estava sempre em seu lugar./ Não cheguei à paz senão quando/ Tudo rejeitei com desprezo./ Compreendera enfim que é impossível/ Tanto afirmar como negar.”

E, no poema 164, esta amostra eloquente de agnosticismo mesclado de hedonismo antirreligioso: “Pobre homem, nunca saberás/ Nada; jamais explicarás/ Um só dos mistérios do mundo./ E já que as religiões prometem/ Depois da morte o Paraíso,/ Busca tu mesmo criar um/ Para teu gozo aqui na Terra,/ Pois o outro talvez não exista.”

Por fim, para mostrar a diversidade do seu pensamento, o rubay 165: “Lâmpadas que se apagam, esperanças/ Que se acendem: aurora./ Lâmpadas que se acendem, esperanças/ Que se apagaram: noite.”

Isso aí, todavia, é apenas pequena amostra do pensamento de Omar Khayyam, que, paradoxalmente, é a um só tempo lúcido e louco, altruísta e egoísta, dentre outras de suas idiossincrasias que, a meu ver, se negam e contradizem mutuamente. Paga a pena ler e reler. É clássico e deslumbrante! Eu, pelo menos, assim o vejo. Gostei! Sou advogado e prezo o contraditório, o paradoxo, as aporias.

Concluído O Rubaiyat, o próximo será Odes de Anacreonte, na tradução de Almeida Cousin, outro clássico que, há muitos anos, recebi como brinde da Ediouro e cuja leitura iniciei e parei várias vezes. Na mesma fila de leituras iniciadas e abandonadas, sem dó nem sobrosso nem justificativa que não a minha impulsividade, estão Almoço Nu, de William S. Burroughs, e Parte de Minha Alma, de Winnie Mandella.

sábado, 14 de novembro de 2009

A cor do sangue, a cor da vida, a cor da paixão



Peguei uma carona com Moacyr Scliar, na leitura cotidiana do site da Academia Brasileira de Letras e, para dar título a minha crônica, tirei do seu conto “A guerra das rosas” as expressões “a cor do sangue, a cor da vida, a cor da paixão”. Sangue é vida, vida é paixão e paixão é vida, como vida também é sangue. Pelo menos eu penso assim, pois, sonhador insensato talvez, sempre ponho, apaixonadamente, alma e coração em tudo o que faço e que vivo.

Talvez porque meu conceito de paixão seja diferente, gosto muito dessa palavra, de seus cognatos e derivados. Tenho paixão por muitas coisas, pessoas, lugares e instituições. Paixão interesseira? Às vezes sim, às vezes não. Correspondida? Às vezes sim, às vezes não. Paixão, na boa acepção, como é do meu costume dizer, se é que existe a acepção má, pois o mal está mesmo é na mente e no coração das pessoas.

Faço, a propósito, uma citação de Umberto Eco, tirada de seu artigo “A arte perdida da caligrafia”, que li na versão eletrônica da Revista Cultura, edição 28 (novembro de 2009), onde ele diz belamente: “As pessoas não viajam mais a cavalo, mas algumas fazem aulas de equitação; existem iates motorizados, mas muita gente é tão devotada à arte de velejar quanto os fenícios de três mil anos atrás; há túneis e ferrovias, mas muitos ainda apreciam caminhar a pé por passagens alpinas; há pessoas que colecionam selos na era do e-mail; e exércitos vão à guerra com rifles Kalashnikovs, mas também organizamos pacíficos torneios de esgrima.”

Isso aí tudo é, para mim, exemplo de paixão. Também de vida, de sangue e de morte. Pode haver paixão mais intensa que a que leva os homens à guerra? Pode haver mais sangue (acompanhado da morte, porque derramado, infelizmente) que na guerra? É má a paixão que faz guerrear? Haveria guerra justa? Sei lá! Depende do contexto e da perspectiva, pois, como já se disse, com sabedoria, “o mesmo cubo pode servir de pretexto para efeitos de sombra e de luz”.


Sou apaixonado pelo meu passado, pelos meus amigos e amigas, pelas coisas boas e belas da vida, dentre as quais sempre faço questão de ressaltar a mulher, a fêmea (com profundo respeito e carinho o digo). Aliás, ao pudibundo ou à pudibunda, que cora ao ler o que escrevo ou ao me ouvir dizer “fêmea”, lembro que Jesus Cristo, sem ser pecador e, muito menos ainda, o devasso presunçoso que alguém pode julgar que eu seja, disse nos Evangelhos de Mateus e de Lucas, a respeito do homem e da mulher, que Deus ou o Criador “os fez macho e fêmea”.


Tenho paixão pelo passado, meu e dos meus amigos, sem negligenciar o presente, o que, com efeito, me faz sofrer diante de frases como esta, recebida por e-mail, de uma amiga a quem sempre admirei muito: “O casamento acabou e por isso cada um deu o rumo que quis dar para sua vida.” Ele se casou novamente. Ela continua solteira, certamente por opção, pois é muito linda, elegante, inteligente, bem-educada.

Situações e decisões como essa devem ser respeitadas, notadamente por quem se diz amigo, mas não deixam de me fazer sofrer, porque me provam cruelmente a falibilidade do homem e dos seus projetos. Pode haver projeto mais lindo e mais auspicioso do que o casamento? Não, não pode. Mas, ainda assim, todos os dias casamentos se acabam e esperanças são malogradas! Por que as coisas são assim? Compreendo, mas não me conformo: nós, os humanos, a despeito da racionalidade (seria por causa dela?), somos tristemente voláteis!

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Nada de nada, pela palavra nada



Conquanto não tenha sido antes, mas ainda assim a propósito da passagem do Dia de Finados, trago a lume mais esta insignificância literária. As expressões “nada de nada, pela palavra nada” foram propositadamente tomadas do primeiro capítulo do livro As intermitências da morte, de José Saramago, publicado em 2005, pela Companhia das Letras, que li na internet (ah, como gostaria de já escrever internete!).

Acabo de reler a tragédia grega Antígona, de Sófocles, na tradução de Donaldo Schüler, publicada pela L&PM Editores e quis fazer uma brincadeira, pois as duas obras, As intermitências da morte e Antígona, são diferentes entre si, não só no tempo e no espaço, muito embora, por paradoxal que pareça, tenham muitos matizes em comum, coisa que não vem ao caso discutir aqui. Naquela, a intrigante ausência da morte; nesta, sua presença marcante como fruto venenoso da tirania, opressão e desatinos de Creonte, mais um usurpador do poder de Tebas.

A antiga civilização grega é apaixonante e seus clássicos são imbatíveis em tudo. Sófocles viveu de 495 a 406 antes de Cristo, mas suas tragédias, que foram citadas várias vezes por Aristóteles na Arte Retórica e na Arte Poética, por exemplo, são de atualidade a toda a prova, como se o poeta fosse nosso contemporâneo.

Sua perenidade evoca, por contraste, a efemeridade e a perecibilidade de coisas, pessoas e instituições, que deveras me incomodam. Sempre vejo com pesar o fechamento de uma casa comercial ou de outra entidade qualquer, a solução de continuidade de um empreendimento, a ruptura de um relacionamento, o malogro de esperanças. Apego-me apaixonada e obstinadamente a pessoas, coisas, lugares e instituições.

A morte, por significar separação e implicar o desaparecimento físico do ser humano, é a mais terrível das coisas terríveis. Como se ouve dizer desde a mais tenra idade, para a morte não tem jeito. Dia de Finados relembra morte e sepultamento, dor e saudade. Dar sepultura aos mortos é do direito natural e, derivado deste, do direito positivo, com implicações de caráter religioso e sociológico que se confundem com o existir do próprio homem, no oceano dos tempos.

Deixar os mortos insepultos seria antinatural, até pelas consequências mais diversas que sobreviriam aos vivos. Na mitologia grega, Creonte, o tirano de Tebas, por não permitir, à revelia do direito e da lei, o enterro do sobrinho Polínice, atraiu para si desgraças que não imaginava, dando causa à morte da sobrinha Antígona, do filho Hêmon e da mulher, Eurídice.

Elementar. O mau governante, em todos os tempos, causa males imensuráveis aos governados. Tirésias bem o diz a Creonte: “Os males desta cidade procedem de tua cabeça” (Antígona, 1015). Creonte, conquanto sabiamente advertido por Antígona, Hêmon e Tirésias, não se demoveu dos maus intentos, porque todo mau governante é turrão. “A arrogância atrai a loucura” (Antígona, 1028). Com efeito, Creonte sorveu a taça da amargura, desvalido e prisioneiro para sempre dos próprios desatinos: “Eu não sou nada, sou menos que ninguém” (Antígona, 1324-1325).

O estarrecedor de tudo isso, em pleno século XXI depois de Cristo, é que não se trata apenas de ficção e mitologia. Nos dias de hoje, como nos dias do passado recente, ou remoto, comumente faltam Tirésias, Antígonas e que tais, mas sobram Creontes nas mais variadas versões.

sábado, 17 de outubro de 2009

Sopinha de remédios e sociedade sui generis



Ácido acetilsalicílico, captopril, carvedilol, digoxina, espironolactona e furosemida, eis aí alguns dos remédios que tomo diariamente. Esses aí são por causa da cardiopatia e os tomo permanentemente há mais de um ano, sem previsão de parar. Mas, como de vez em quando tenho outros problemas de saúde, tipo alergia respiratória, dermatite e reumatismo, acabo tomando mais outros medicamentos. Caramba! Sou, pelo conteúdo, uma drogaria semovente.

Abrindo e fechando parêntesis, semovente é o ser ou a coisa animada que se move por si mesma. Daí a classificação dos bens em móveis, imóveis e semoventes, pelo Código Civil. Bens móveis são os que podem ser movidos pelo ser humano, sem modificação ou prejuízo da essência, como carros e mesas, por exemplo; bens imóveis são os terrenos e suas acessões físicas, e ainda os assim declarados por lei; bens semoventes são os bois, os cavalos, e assim por diante.

Tomar tanto remédio diariamente me incomoda, é óbvio, mas não muito, a não ser o bolso, que é a parte mais sensível do homem (e da mulher também). É claro, já me pareço um sócio da rede Big Ben, só que é uma espécie de sócio a que os manuais de Direito Societário e de Contabilidade não fazem a menor alusão, a saber, aquele sócio que injeta recursos frequentemente, mas não tem participação nos lucros. Seria um sócio passivo? Sei lá! Sou advogado e, antes de me graduar em Direito, formei-me no curso técnico de Contabilidade, mas nunca li nada a respeito nem ouvi falar desse tipo de sócio. Brincadeira, claro; mas que é verdade é. É uma sociedade sui generis.

Se não o incomoda muito, por que, volta e meia, escreve sobre o assunto? – há de se perguntar algum leitor. É que eu gosto de me lembrar sempre de que, se tomo remédio é porque estou doente, mas não estou morto. Mas não é somente por isso. É também porque, como já escrevi em outra ocasião, o nome genérico, a denominação do princípio farmacológico ativo dos medicamentos sempre me chamou a atenção. Alguns (se não quase todos) são bem diferentes do linguajar do homem comum.

O professor Gerson, de São Paulo, leitor das minhas crônicas no blogue http://valdinar.zip.net, contou, no comentário à crônica “Fumarato de Cetotifeno”, que toma diariamente cloridrato de trazodona. Aliás, a manifestação do leitor não tem preço, tem valor e valor incalculável. O leitor merece todo o respeito e carinho, na boa e mais profunda acepção dessas palavras. Se me demoro um pouco mais de uma crônica para a outra ou, ainda, quando o jornal deixa de deixar publicar o que escrevo, logo vêm dois, três ou mais leitores marabaenses dizendo-me: “Doutor, não deixe de escrever não! Eu leio sempre seus textos e gosto muito deles.” Do mesmo jeito, leitores de São Paulo, do Rio e de outros lugares, têm-se manifestado pela rede mundial de computadores.

Um dia (já faz alguns anos, pois ainda estava na Universidade), um dos meus professores de Direito abordou-me na porta do Banco do Brasil e, brincando, perguntou: “E aí, gramático? Quando é que vai sair da gramática?” E, antes que lhe respondesse, foi logo me dizendo: “Olhe lá, estou brincando. Não vá pôr meu nome lá não!” Também fiquei feliz um dia desses quando me disse um dos colegas da Universidade, da turma de Direito de 1996, que só compra o jornal Correio do Tocantins, ou o jornal Opinião (Marabá, infelizmente, ainda só tem esses dois jornais) quando sabe que tem a minha crônica.


Há, todavia, quem não gosta do que escrevo, o que é natural. Existem pessoas que se incomodam até com o latim, que já é morto, imagine com a balela de cronista de meia-tigela, que, muito embora doente, ainda está vivo. Agradar a todos, com sabemos, é simplesmente impossível. Ah!... Antes que me esqueça, só falei de remédios hoje porque tive que comprar ácido acetilsalicílico, captopril, carvedilol, digoxina, espironolactona, furosemida e dipropionato de betametasona (este último, de uso dermatológico). “Mas é claro, meu chefe!” – como diz o amigo Milton Farias.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Fragilidade humana


Segunda-feira, 12 de outubro de 2009 seria mais um dia qualquer dos meus 49 anos de vida, se não fora o dia triste que foi: participei de dois velórios, juntamente com a Câmelha, minha mulher, e, na hora dos sepultamentos, tivemos que nos separar; fui para o cemitério “Recanto da Saudade”, Nova Marabá, e ela foi para o cemitério (pelo menos que eu saiba) ainda sem nome, na Cidade Nova. É que, na noite de ontem, faleceram duas pessoas da nossa amizade: Simone Maria Vasconcelos Nascimento, de 21 anos, secretária da Escola Municipal “Luterana”, onde a Câmelha é coordenadora pedagógica; e Adenair Freitas Heringer, de 77 anos, amada irmã em Cristo (da Igreja Presbiteriana do Brasil, como nós).

Foi uma experiência ímpar e dolorosa, pelo intraduzível sentimento de perda corroborado pela dor inexprimível da impotência ante a perecividade natural do ser humano. A morte, conquanto seja a quase certeza da vida de cada um, ninguém a espera nem a deseja. Digo a quase certeza, porque advogo a minha fé nas Sagradas Escrituras, segundo as quais nem todos morrerão: quando Cristo voltar, os mortos ressuscitarão e os vivos serão transformados (1 Coríntios 15.51, 1 Tessalonicenses 4.17).

Encerradas as cerimônias e passada a agonia da hora mais triste, que é a das primeiras pás de terra jogadas sobre o caixão baixado à sepultura, voltamos nós, cada um para sua casa, e aqui estou eu, após o reencontrar da mulher, que fora prestar a última homenagem a sua colega Simone. Ela dorme, porque não dormiu de ontem para hoje e estava muito cansada; eu, todavia, não consegui conciliar o sono, por mais que o buscasse. Precisava escrever alguma coisa, dizer algumas palavras sobre o estado de espírito de que me vejo prisioneiro no recesso silencioso do meu íntimo, deixando-me abandonar à meditação profunda sobre os mistérios da vida e da morte.

Ah, como quisera eu ser o poeta que não sou, para expressar, de forma grave, mas espirituosa, o que agora me incomoda e locomove! Como gostaria de poder consolar de forma realmente eficaz a mãe, pai e irmãos da jovem de 21 anos, bem como, semelhantemente, o marido, filhos e netos da amada irmã em Cristo. Sem chance, impossível! Não sou poeta e, ainda que o fosse, não poderia fazê-lo: tudo que escrevesse ou dissesse não supriria jamais a falta dos entes queridos que se foram. Só o tempo, naturalmente, poderá trazer, de alguma forma, a consolação.

Nós somos frágeis como a flor da erva, que desabrocha na madrugada e ao entardecer já quedou murcha e sem vida. A jovem linda, bem-educada e talentosa que anoiteceu cheia de vida e de sonhos não pôde ver o amanhecer, porque já estava morta. Ontem, trabalhava, corria, brincava, sorria e fazia planos; hoje, está enterrada e com ela pereceram todos os seus sonhos! Na outra família, o jovem que um dia se casou, viu com alegria, ano a ano, nascer e crescer cada um dos filhos, agora, ancião, o corpo alquebrado e a mente amortecida pelo esvair-se natural da existência, viu baixarem à sepultura os ombros que toda a vida o ampararam. A morte, ah, como é terrível a morte!

A Bíblia diz que Deus pôs a eternidade no coração do homem (Eclesiastes 3.11), mas, como se vê, o homem é um produto altamente perecível. É preciso ter esperança na vida futura, pois a vida terrena é muita curta, efêmera ao extremo: a ninguém vale a pena se apegar às coisas deste mundo. Como escreveu o apóstolo Paulo (1 Coríntios 15.19): “Se a nossa esperança em Cristo se limita apenas a esta vida, somos os mais infelizes de todos os homens.”

domingo, 11 de outubro de 2009

Juiz também é humano



Chamou a atenção de todos e, o mais importante, cativou a todos a emoção do juiz de direito Cristiano Magalhães, que, no dia 9 de outubro de 2009, na Câmara Municipal de Marabá, não conteve as lágrimas ao falar na audiência pública da comissão parlamentar de inquérito que investiga a exploração sexual de menores, conhecida popularmente por CPI da Pedofilia. O ilustre magistrado, por sinal velho conhecido e amigo do presidente e do relator da CPI, é titular da 5.ª Vara Penal de Marabá e fazia parte da mesa diretora dos trabalhos, como convidado de honra.

Ao usar da palavra, na presença de deputados, vereadores, advogados, membros do Ministério Público, delegados de polícia e pessoas de diversos outros segmentos sociais, o magistrado, ao se referir a um caso no qual atuou como juiz até a sentença de pronúncia dos denunciados, hoje condenados a mais ou menos 40 anos de reclusão cada um, interrompeu bruscamente a fala, por cerca de um minuto ou um pouco mais, e chorou ante a lembrança da crueldade dos assassinos, que estupraram uma criança e depois, para ocultar o crime, a mataram impiedosamente.

Passada a emoção incontida, o magistrado, elegantemente, pediu desculpas a todos e prosseguiu. Não pude deixar de admirar profundamente aquele gesto, que poderia servir de azo para tudo, menos para pedido de desculpas. Não, não era motivo para pedir desculpas: era motivo para ser ovacionado de pé, ante a sua sensibilidade de ser humano que não se deixou sufocar pela sisudez e gravidade da honrosa, mas não menos espinhosa, função de judicar. Naquela hora, sentado no Plenário da Câmara, ao lado da vereadora Antônia Carvalho de Araújo Albuquerque, não me contive e falei baixinho ao pé do ouvido dela: “Que bom, juiz também é humano!”

A judicatura é, com efeito, um dos mais importantes, honrosos e sublimes misteres a que se pode dedicar o homem ou a mulher, mas é também, por isso mesmo, um terreno movediço em que, envaidecidos, não são poucos os que aí naufragam, deixando-se abandonar ao complexo de superioridade e a sentimentos outros do mesmo jaez, desprovidos de qualquer nobreza. Há juízes cujos atos e atitudes demonstram a todas as luzes que se julgam infalíveis e, conquanto o foro íntimo da consciência de cada indivíduo seja algo inacessível aos mortais e que somente a Deus é dado conhecer, a ninguém será lícito duvidar de que existem alguns deles que, tolamente, chegam a pensar que são deuses, sentimento pobre, abjeto e desprezível, o qual nos parece, não raro, também se apoderar de muitos membros do Ministério Público e até de serventuários da Justiça.

Ah!... Não posso deixar de registrar que, não sei por que cargas d’água, a Subseção da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) não foi convidada para a audiência pública, muito embora seja inquestionável que, se fosse convidada e recebesse a palavra a tempo, teria muito com que contribuir para a grandeza do debate e o fornecimento de subsídios para o trabalho da CPI. Queira ou não queira quem quer que seja, a OAB é diretamente interessada no assunto tanto quanto o Poder Judiciário e o Ministério Público. A uma, porque o advogado – dizem a Constituição Federal e a lei – é indispensável à administração da justiça. A duas, porque, também por força da Constituição e da lei, dentre as finalidades da OAB ressaltam-se expressamente a defesa da Constituição, da ordem jurídica, dos direitos humanos e da justiça social.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Fim ou final, frascos e comprimidos


Queria, nesta crônica, falar de O Caderno, livro de crônicas de José Saramago, que comprei recentemente e estou terminando de ler, e do livro Como os Médicos Pensam, que ganhei do meu filho Douglas, como presente do Dia dos Pais, e também estou lendo. Fica, entretanto, para outra ocasião. Hoje, responderei (sinteticamente na medida do possível) à defesa gratuita de frascos e comprimidos ou crítica ácida a um advogado que escreve para jornal.

A defesa de frascos e comprimidos, após dizer que na área jurídica “as formalidades da ortografia até podem ter sentido”, também diz que os advogados “usam latim para mostrar conhecimento, quando deveriam ater-se ao bom português”. Ledo engano da defesa em ambas as afirmações. A preocupação com a ortografia e com outros aspectos da língua fazem sentido para todo o profissional sério de todos os ramos de atividade. O emprego do latim tem razões técnicas muito além da simples e ingênua demonstração de conhecimento. Empregar final por fim, como se fossem a mesma coisa, não é bom português.

Escrevi a crônica “Fim ou final? Depende...” (Opinião, edição 1.769, 6 e 7 de agosto de 2009), de uma sentada, a partir de conhecimento próprio de português, sem consultar livro algum, porque o português aprendido no ensino fundamental e no ensino médio é suficiente para isso. E agora, para refutação resumida de “Comunicação – Eu me expresso e você entende” (Opinião, edição 1.771, 11 e 12 de agosto), não preciso ir buscar argumentos na área jurídica. Com efeito, a citação de dois jornalistas profissionais de altíssimo gabarito (com os negritos, itálicos e sublinhados originais) há de ser suficiente para mostrar ao leitor o equívoco do defensor de frascos e comprimidos. Deixo de citar outros por falta de espaço e até por ser desnecessário.

O jornalista e escritor Eduardo Martins, no livro Manual de Redação e Estilo, nada mais nada menos que o manual de redação do jornal O Estado de S. Paulo, diz o seguinte: “[...] Fim é a palavra correta para indicar o término ou a conclusão de alguma coisa: no fim da semana, no fim do mês, no fim do ano, no fim do século, até o fim de 1998, até o fim do trabalho, até o fim dos dias, no fim do jogo. [...]”

De forma ainda mais contundente, Marcos de Castro, licenciado em Letras Clássicas, e também jornalista e escritor, diz no seu livro A Imprensa e o Caos na Ortografia: “O substantivo fim, tão pequenino em sua simplicidade, vai ficando esquecido. Não se diz nem se escreve mais ‘fim de semana’, nem ‘fim de mês’. Só se ouve e se lê ‘final de semana’, etc.” E segue argumentando em cinco longos parágrafos do seu texto de seis, que – é lógico! – não dá para transcrever aqui, por falta de espaço.

É necessário, contudo, transcrever parte de um dos parágrafos:


“O simples é fim, porque o substantivo natural é fim, vem do substantivo latino finis, através do acusativo finem (latim vulgar fine). Final é um adjetivo, vem do latim finalis, e. Pode ser usado como substantivo, em português, é bem verdade, mas será sempre o adjetivo substantivado, carregará sempre esse ranço. Quem usa final como substantivo parece que gosta precisamente do ranço, como há quem goste de caça faisandé. A imprensa, entretanto, deve evitá-lo. O normal é que no fim (substantivo) da missa o padre dê a bênção final (adjetivo) – a redundância vai como reforço do exemplo. Quando está no minuto final (adjetivo), o jogo está chegando ao fim (substantivo). Esse é o emprego natural, despojado, distante de ostentações. Comunicar-se é simplificar. Enveredar pelas complicações, buscar o pomposo, é sempre má comunicação.”

Eduardo Martins, que faleceu recentemente, era do jornal O Estado de S. Paulo. Marcos de Castro, jornalista profissional, trabalhou na Rede Globo, nos jornais O Globo, O Dia, Jornal do Brasil e Jornal da Tarde, e nas revistas Enciclopédia Bloch, Veja, Realidade e Manchete. Fiz a minha parte. O leitor é livre para ficar com o que eles escreveram em obras de nomeada ou com o que escreveu a defesa de frascos e comprimidos. Quanto a isso, doravante, calar-me-ei. E, por questão de espaço, em crônica futura tratarei da afirmação de que o latim só vive no meio jurídico, afirmação também equivocada, para dizer o mínimo.

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Meu pai é o cara!


Se ninguém me admirasse, como há pessoas de ambos os sexos e diferentes faixas etárias que me admiram, ainda assim eu seria admirado. Sim, seria, porque eu me admiro. Não é narcisismo, nem falsa modéstia, nem falta de autocrítica, é admiração e autoestima. Com efeito, há, por certo, quem pense diferente, mas creio que minhas virtudes cobrem meus defeitos. E, sem prejuízo da razão, da autocrítica e da modéstia, azar de quem pensa diferente. É! Sem arrogância, mas com a firmeza necessária: azar deles. Eu sou assim e muitas das coisas que sou não pedi para ser.

Não falo dos atributos físicos, é óbvio, pois gostaria de ser fisicamente diferente do que sou: um pouco mais alto, músculos mais avantajados e farta cabeleira no lugar da carequinha, muito embora se diga ser dos carecas que elas gostam mais. Certamente pegaria bem. Mas, fazer o quê?... Falo das outras características, de atributos morais e intelectuais. Gosto de ser corajoso na medida do possível, de demonstrar gratidão, de não ser covarde, de não ser omisso, de não ser desleal, de dizer a verdade, não obstante saiba que, segundo a Bíblia, todo homem é mentiroso. Odeio a omissão, a covardia, a ingratidão e a deslealdade. O mundo seria, com efeito, muito melhor se não existissem os milhões de covardes, omissos e canalhas de outras categorias que existem.

Talvez o leitor esteja a se perguntar por que estou escrevendo isso. Bom, respondo que é por vários motivos, alguns dos quais não declinarei explicitamente. Um deles é querer registrar em crônica, como registro agora, que, quando posso, assisto a algumas telenovelas da Globo. Sim, assisto. E daí? Não vejo nisso nenhum prejuízo para minha intelectualidade. Logicamente, alguém pode até dizer que não sou intelectual, mas eu acredito que sou e isso é o que importa. Outro motivo é dizer que gosto de reler meus textos e admirar coisas que escrevi neles. E outro – o principal deles – é para repudiar, sem citar nomes, a existência de muitos covardes, omissos e canalhas de Marabá.

Como telespectador de telenovela, gosto, por exemplo, da admiração que o personagem João Manoel, da novela Senhora do Destino, tem pelo pai, o ex-bicheiro Giovanni Improtta. Percebo aí beleza e sagacidade na ironia do autor da telenovela ao demonstrar a lei natural que diz que quem ama não vê os defeitos, ou, se vê, prontamente os releva. João Manoel esbanja, em gestos e palavras, admiração pelo pai. Guardei, por exemplo, esta tirada: “Faço minhas as palavras do meu pai. Ele é o cara!” Puxa vida, achei o máximo! Talvez porque eu também admirava muito, como ainda admiro meu falecido pai, que não foi bicheiro; foi, por toda a vida, lavrador honesto e pobre.

Quanto aos canalhas que infestam postos importantes em Marabá, deixo este trecho retirado da interpretação que escrevi de uma instrução maçônica recebida: “Não quero, sinceramente, apontar o dedo acusador para ninguém. [...] Até porque a consciência de cada um é sempre, queiramos ou não, o maior juiz, o árbitro cujas decisões calam fundo e falam alto no silêncio eloquente.” É. Eu escrevi isso, porque assim acredito e, por isso, defendo. Fica, todavia, a pergunta: Canalha tem consciência? Eis a questão.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Fim ou final? Depende...


A imprensa, mas não somente ela, confunde-se no emprego das palavras fim e final, e quase sempre emprega erradamente a palavra final, pondo-a no lugar de fim. Na linguagem oral também se verifica a mesma confusão. As pessoas (muitas delas até muito críticas) gostam de falar ou escrever final de semana, quando deveriam dizer ou escrever fim de semana; final do dia por fim do dia, e coisas similares. Pois bem, seu moço. Acontece frequentemente, mas não deveria acontecer. Nem tudo é normal por acontecer com muita frequência.

Trata-se, no caso, de uma simples questão morfológica. O problema é que a maioria dos falantes de hoje (e escreventes também) não se preocupa com morfologia nem com sintaxe nem com coisa alguma da língua e sai por aí escrevendo e falando erradamente, por mero desleixo. O Português suficiente para falar e escrever bem consta dos programas do ensino fundamental e do ensino médio. Quem não aprendeu aí dificilmente aprenderá no ensino superior, só se fizer um bom curso de licenciatura em Letras. E muitos nem assim, uma vez que o aprendizado depende muito da pessoa, não somente do programa estudado. Conheço licenciados em Letras quem não sabem Português.

Isso me lembra o advogado e gramático de nomeada Napoleão Mendes de Almeida. Ele dizia (e nisto concordo plenamente com ele): “Como respeitar a ideia de quem não respeita o idioma em que a expõe?” E, logo em seguida: “A própria narração jornalística de um fato afigura-se falha de crédito quando o relator mostra inverdades de linguagem.” Caramba, meu: escreveu errado! Como posso acreditar que a notícia está certa?

Como posso acreditar que o advogado, o representante do Ministério Público ou o juiz, nas manifestações dentro do processo, empregou corretamente a lei e o Direito, se ele empregou erradamente o Português? Como dizia o mestre Napoleão, não dá para acreditar. Quem se desleixa no falar e no escrever o vernáculo também o faz na aplicação da lei e do Direito. Não aprendeu corretamente o Português. Aprendeu e lei e o Direito? Como? Jamais, meu caro leitor. E o raciocínio vale para qualquer outro segmento da atividade humana. Quanto a isso, que ninguém se engane.

O jornalista que troca, erradamente, fim por final também pode, por incapacidade de raciocínio e de interpretação, trocar e truncar os fatos. O médico que erra no falar e no escrever também erra no diagnosticar a enfermidade e prescrever o medicamento. E por aí vai, meu caro leitor.

Fim é substantivo, final é adjetivo. O emprego de final só será legítimo quando o oposto for inicial. Quando, em vez de inicial, couber início ou começo, tem-se que escrever ou dizer fim e não final. Já, ao contrário disso, o antônimo de inicial não é fim, é final: petição inicial, petição final; pedido inicial, pedido final; decisão interlocutória, decisão final, e assim por diante. Também é correto o emprego de a inicial, porque, neste caso, equivale a petição inicial. Se é, no mínimo, estranho dizer ou escrever inicial da semana, por que, então, final da semana? Somente por erro decorrente do desleixo. “Finis coronat opus” (o fim coroa a obra), diz a máxima em latim. É o fim que coroa a obra, não é o final!

domingo, 2 de agosto de 2009

Eu, as apostilas, o correio e o instituto



Sou paraense, de São Domingos do Araguaia (que pertenceu a Marabá até a emancipação de São João do Araguaia em 1961), onde nasci em 6 de março de 1960, filho de pai e mãe analfabetos. E aprendi a ler e escrever aos dez anos, em 1970, com professor particular em casa, o Sr. Rossi Francisco Barros, um homem a quem meu pai pagou para que ensinasse “ler, escrever e contar” a mim e a meus irmãos, José e Raimundo (hoje falecido).

Não estudei quase nada em escola convencional, presencial. Tive formação irregular: aprendi a ler em 1970, estudando em casa, durante oito meses. Cursei a distância, por correspondência, o 1.º e o 2.º graus, hoje, ensino fundamental e ensino médio, respectivamente. Depois de ser alfabetizado em 1970, fiquei sem estudar formalmente até 1976, muito embora, ao longo desse tempo, lesse tudo que encontrava pela frente, de livros a bulas de remédio e tudo mais. Em 1976, após fazer um teste, fui matriculado na 4.ª série do 1.º grau, hoje ensino fundamental, na Escola Municipal "José Luiz Cláudio", de São Domingos do Araguaia, e passei em primeiro lugar. Naquele ano, fui o aluno mais bem colocado, em todas as disciplinas, de todo o corpo discente da escola.

Em 1977, devido a São Domingos – ainda um distrito muito atrasado e sem qualquer infraestrutura – não oferecer a 5.ª série, matriculei-me, em abril, no supletivo de 1.º grau por correspondência, do Instituto Universal Brasileiro, por necessidade e por influência da propaganda levada a efeito pelo programa de rádio “Edgar de Sousa”, cujo locutor tinha o mesmo nome.

Estudei com dificuldades de toda a ordem, principalmente financeira (meu pai, hoje falecido, pagou as mensalidades com extrema dificuldade). Venci obstáculos quase insuperáveis, pois estudar a distância naquele tempo era muito diferente dos dias de hoje. Éramos eu, as apostilas e o correio precaríssimo de então, no Pará; o instituto, em São Paulo, e os milhares de quilômetros que nos separavam. Comunicação com os professores, nem por telefone, só por carta. Se eu tinha alguma dúvida, era obrigado a escrever uma carta e esperar cerca de trinta dias para receber a resposta. E, se discordasse da resposta ou persistisse a dúvida, teria que escrever outra carta e esperar outros trinta dias ou mais. Havia, demais disso, a discriminação e o desestímulo, pois a maioria das pessoas dizia que eu não aprenderia e que o curso não teria validade.

Não obstante tudo isso, aos trancos e barrancos, cego às dificuldades e surdo às críticas, não me demovi, não me deixei abater e concluí o curso. O certificado, que ainda hoje guardo com carinho ao lado do diploma de bacharel em Direito e dos muitos outros diplomas e certificados que possuo, é assinado por Mara Maria Rabelo e datado de 12 de janeiro de 1979.

Era, contudo, apenas o começar de uma longa e árdua caminhada, porquanto a pobreza impedir-me-ia de prestar o exame de suplência e receber o certificado de conclusão com direito a seguir estudos regulares. O certificado recebido era apenas de preparo; o de conclusão deveria ser expedido por estabelecimento de ensino oficial (autorizado, fosse público ou particular). E o exame para essa certificação era realizado somente duas vezes por ano, na capital do Estado. Não tive condições de fazê-lo e fiquei, por muitos anos, sem documentação escolar.

Malgrado tudo isso, não desanimei. De 1979 a 1991, matriculei-me em vários cursos por correspondência, concluindo uns e outros não. Do Instituto Universal Brasileiro, Matemática Moderna, Supletivo de 2.º Grau e Contabilidade Prática, e, conquanto não os tenha concluído, aprendi muito. Do Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac), do Centro de Ensino Tecnológico de Brasília (Ceteb – Escola Aberta) e de muitas outras entidades, os cursos – que concluí – de Português, Matemática Comercial, Orientação para o Trabalho, Auxiliar de Escritório, Legislação Trabalhista, Contabilidade Pública, Revisão de Língua Portuguesa e muitos outros.

Aprendi muito em todos os cursos. Prova é tanto que, em 1992, já em Xinguara, prestei o exame de suplência de educação geral em nível de 2.º grau (chamado popularmente “exame de massa”) e fui aprovado logo da primeira vez, recebendo, com muita emoção, o certificado de conclusão, que me isentava de histórico de 1.º e 2.º graus e me dava direito a seguir formação regular em qualquer faculdade ou universidade do país. Quase chorei de alegria naquela hora de um dia qualquer já do ano de 1993. Era demais, era a tão sonhada documentação dos meus estudos e conhecimentos! Parecia um sonho!

O certificado de conclusão do 2.º grau, expedido pelo Departamento de Ensino Supletivo da Secretaria de Estado de Educação do Pará, isentava-me, na forma da lei, do histórico de 1.º e 2.º graus. Mesmo assim, fiz questão de me submeter ao exame de massa em nível de 1.º grau. Não era necessário, mas eu queria fazer, por mero capricho. Queria ter um certificado de 1.º grau, como tinham as demais pessoas. E fiz. Daí adveio mais um fato inusitado: meu certificado de conclusão do 1.º grau é posterior ao de conclusão do 2.º grau.

Em 1996 – sem fazer cursinho preparatório – prestei vestibular para o curso de Direito da Universidade Federal do Pará – Campus de Marabá, logrando ser aprovado em quinto lugar, à frente de muitos que estudaram nas melhores escolas de Marabá e da capital, além de terem feito cursinho pré-vestibular. Formei-me em 2002 e tive a alegria de ser aprovado no exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) antes da colação de grau. Sou advogado: meu número de inscrição na OAB – Seção do Pará é 11.121.

Hoje, além de exercer a advocacia em Marabá, escrevo artigos e crônicas, que publico nos jornais Correio do Tocantins e Opinião, na revista Foco e nos meus blogues (http://valdinar.zip.net, http://valdinar.blogspot.com e http://vms.uniblog.com.br). Restam-me ainda, dentre outros, os sonhos do mestrado e do doutorado. Sonhos concretizáveis? Sim, por distantes que estejam. Ah!... Para quem ainda não sabe, a forma aportuguesada blogue, da forma inglesa blog, é dicionarizada. Mas isso será assunto de outra crônica.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

ELA, A BULA DE REMÉDIO

É incrível! Já disse, em outras crônicas, que gostava de ler bula de remédio. E é verdade, lia mesmo. Comecei a fazê-lo ainda adolescente, a pedido do meu pai ou da minha mãe, ambos analfabetos, para saber as indicações e, principalmente, a posologia. Posteriormente, passei a ler bulas por simplesmente gostar, ainda que isso possa parecer incrível para muita gente, mormente os inimigos da leitura de qualquer tipo de texto. Mas, como disse antes, eu lia, não leio mais (por falta de tempo, principalmente). E estou, contudo, cada vez mais inclinado a voltar a ler, por causa das descobertas que tenho feito.

Hoje me vi tentado a escrever novamente sobre o assunto e peço vênia ao leitor, a quem respeito e não quero desagradar. Que isso, portanto, me seja permitido. É que eu não sabia de outras pessoas com o mesmo hábito, mas de vez em quando as tenho descoberto. E o mais importante de cada descoberta é ver, com alegria, que os outros leitores de bula de remédio, ao contrário de mim, são pessoas importantes, são escritores ilustres da estirpe de Carlos Heitor Cony e Rubem Fonseca, por exemplo.

Caramba! É legal demais! Não estou sozinho e, como se isso não bastara, estou, em tal costume, ladeado por sumidades da intelectualidade brasileira. Posso, por conseguinte, parodiando o soldado Chespirito, personagem de um episódio do Chaves, dizer: “Ah, dileto leitor, é honra demais para eles!” Brincadeira, lógico. Mas, é verdade, gosto de assistir aos programas do Chaves. Sempre gostei. Por causa, certamente, da pobreza de ambos, a dele e a minha.

Voltemos, contudo, à bula. O que hoje despertou sobremaneira minha atenção e me fez voltar ao assunto foi o motivo por que o mestre Cony, imortal da Academia Brasileira de Letras, lê bula de remédio: não é para saber as indicações nem a posologia, é para se sentir humilhado, para relembrar que, diante da linguagem da bula, ele, como os demais mortais, não está com nada. Confira, pois, o leitor a simpatia, ironia e sagacidade da crítica: “Quando sofro um assomo de sabedoria e me considero razoavelmente informado, costumo ler bulas de remédio para sentir a humilhação de não entender nada do que estou lendo” (Carlos Heitor Cony, na crônica “O morfema”).

É. Ela, a bula de remédio, tem muito mais serventias do que pensamos nós, os mortais comuns, algumas delas, com efeito, serventias aqui inconfessáveis. Não há jeito que dê jeito. Vou voltar a ler bulas de remédio, a começar pelas de ácido acetilsalicílico, captopril, carvedilol, digoxina, espirololactona e furosemida, que tomo diariamente por causa do coração. Não posso deixar de fazer isso. Preciso ficar mais humilde, me sentir mais humilhado.

Ih!... Já sei. Você achou remédio demais? Pois, seu moço, não pense isso não! Falei apenas das minhas drogas de uso diário (impostas pela cardiopatia, não pelo cardiologista), mas existem muitas outras que, aqui e acolá, ando tomando por outras indicações médicas. Não mencionei, verbi gratia, as do reumatismo. Deixemos isso. Chega. Basta dizer que sou, pelo conteúdo, uma drogaria semovente. E preciso voltar a ler bula de remédio, por gosto literário, para me sentir humilhado e, principalmente, por uma questão de sobrevivência.

segunda-feira, 20 de julho de 2009

DIA DO AMIGO


Não sabia que 20 de julho é o Dia do Amigo. Fiquei sabendo este ano graças à tecnologia e pelo mesmo motivo não pude me esquecer da comemoração, uma vez que estou doente e, por conseguinte, tenho que me ocupar da minha saúde em vez de ficar ligado em comemoração disso ou daquilo. Pois bem. Dia 19, à noite, ao abrir minha página no Orkut, deparei-me com mensagem da amiga Gilmara Neves, alusiva à comemoração do Dia do Amigo. Aí fiquei sabendo da sua existência, que, como já disse, não sabia.

Abrindo e fechado parêntesis, é bom lembrar que a rede mundial de computadores, mais conhecida por internet, é um dos assombrosos prodígios hodiernos da ciência e da tecnologia, muito embora nem atentemos para isso. Conquanto ainda exista um enorme contingente de excluídos, para milhões e milhões de pessoas do mundo inteiro é tão comum acessar a internet quanto tomar banho ou fazer qualquer outra coisa que o valha pelo uso cotidiano.

Dia 20, levantei-me cedo devido às dores reumáticas que me atormentaram a noite inteira: doíam-me o calcanhar do pé esquerdo e o joelho direito, que estão inchados; o mucumbu e os ombros. Passei a noite com febre. Tão logo me levantei, tomei a medicação da manhã imposta pela cardiopatia (furosemida, digoxina e carvedilol), li a Bíblia e o devocionário Cada Dia, e liguei o computador, para acessar a internet e poder conectar-me virtualmente ao mundo inteiro. E, quando abri meu e-mail do Brasil On Line (BOL), lá estava a mala-direta eletrônica do Submarino, oferecendo-me descontos imperdíveis para compras feitas, no Dia do Amigo, com o cartão Submarino.

Da leitura da Bíblia na tradução da Nova Versão Internacional, calou fundo no coração este rasgo: “Que a paz de Cristo seja o juiz em seu coração, visto que vocês foram chamados para viver em paz, como membros de um só corpo. E sejam agradecidos” (Colossenses 3.15). Da mensagem do Cada Dia, intitulada “Em tudo dai graças”, a frase: “Deus espalhou pequenas revelações da sua bondade e graça por toda a sua criação.”

Lembrei-me do que a primeira parte do último versículo do capítulo 31 do livro de Gênesis (primeiro livro da Bíblia, para quem porventura ainda não sabia) nos diz: “E Deus viu tudo o que havia feito, e tudo havia ficado muito bom.” A obra da criação reflete a bondade de Deus, que é mais do que um amigo. A Bíblia diz que há amigo mais chegado do que um irmão. É verdade! Neste mundo de falsidade, hipocrisia e mentira, um amigo de verdade é revelação da bondade de Deus. Como diz a canção popular, “um amigo de verdade não se encontra por aí”.

Por fim, a lembrança da mensagem da amiga Gilmara, da qual guardei estas palavras: “Ser amigo é falar mesmo quando o amigo não deseja ouvir, é estar sempre pronto para compartilhar, dividir e juntos encontrar as soluções para qualquer problema.” De outra mensagem virtual, enviada lá do Rio Grande do Sul, a frase: “As mais lindas coisas da vida não podem ser vistas nem tocadas, mas sim sentidas pelo coração, assim como a minha amizade por você.” Achei legal, lindo, cativante!

Despertado para a realidade das dores espalhadas pelo corpo, fiquei pensando nos relacionamentos pessoais do plano físico e do virtual. No plano virtual, a despeito da frieza da tela do computador, parece haver mais calor, mais energia, porque as pessoas são mais espontâneas. Ou mais hipócritas. Sei lá! Já nos relacionamentos físicos, as pessoas ainda têm barreiras que lhes impedem a expressão espontânea dos sentimentos de amizade, de carinho, de amor fraternal, de admiração.

Que pena! No Dia do Amigo de 2009, ainda é mais fácil dizer “você é muito importante para mim” pelo computador do que fisicamente, porque as pessoas continuam aprisionadas pelos preconceitos e barreiras de toda a ordem e natureza. Ah!... Escrevi mucumbu, por querer homenagear meu avô materno que chamava de “dor no mucumbu” o que, anos mais tarde, a Medicina Legal ensinar-me-ia que se chama de “dor na região ilíaca”.

domingo, 19 de julho de 2009

EXAGERO? SIM, CERTAMENTE. DE AMBOS OS LADOS


Texto do blog do Ademir Braz, Quaradouro, postado em 17 de julho de 2009, sob o título “Exagero”. Ademir Braz é advogado como eu, meu irmão maçom e amigo, e o endereço do Quaradouro é http://quaradouro.blogspot.com:

Exagero

Advogado baiano trouxe petição de 300 laudas à Subseção Judiciária local e o despacho do magistrado deveria tornar-se súmula vinculante: “Não se admite nos tempos atuais que alguém faça uma petição desse porte, dessa natureza. Sugiro ao autor que a reduza para no máximo quinze laudas. Não obstante, este Juízo, conforme sua disponibilidade, lerá de cinco a dez páginas por dia.”

Meu comentário

"Se lascou-se", mano velho! Essa petição eu faço questão de ver.

Se bem que as leis processuais, pelo menos que eu saiba, não fixam número mínimo nem máximo de páginas que devem formar uma petição. Em sendo assim, penso que, diante do princípio da legalidade ("ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei", art. 5.º, II, CF), o magistrado, sob pena de se arvorar acima da Constituição da República (o que não meu causa espanto, se acontecer), não pode fixar o número de páginas da petição de quem quer que seja. Não, não pode, mano velho! Cabe a ele, magistrado, como poder constituído pelo povo e em seu nome exercido, tão somente deferir ou indeferir, no todo ou em parte, a petição do advogado, em qualquer das hipóteses, fun-da-men-ta-da-men-te.

Sinceramente, não sei qual dos dois é mais abusado, se o advogado-escritor, sem senso do ridículo, ou se o juiz-censor, que parece no não ter agido no caso com o mesmo senso.


É como vejo e por isso defendo. Não sei os outros advogados. Tomara que não me esconjurem!

De fato, causa espécie e admiração o autoritarismo demonstrado por alguns juízes em despachos e decisões diversas. Há também servidores do Poder Judiciário muito petulantes, autoritários e mal-educados, como há advogados do mesmo jaez. Conquanto assim ajam muitas vezes, o fazem ao arrepio da lei, que, em sentido contrário, tem mandamentos específicos para todos.

O advogado deve ser conciso nas postulações e agir sempre de forma que angarie o respeito de todos, para si e para a categoria a que pertence. Agir, todavia, com independência em quaisquer circunstâncias, sem medo de, no exercício da profissão e se for preciso, cair em impopularidade ou desagradar ao magistrado ou a qualquer outra autoridade. O juiz obrigatoriamente deve decidir, deferindo ou indeferindo, mas sempre fundamentadamente. Fundamentar na lei, se houver; não havendo, na analogia, nos costumes e nos princípios gerais de direito. E o servidor? Bom, o servidor – que, seja qual for o cargo, é pago pelo contribuinte – deve ser eficiente e agir com urbanidade, tratando a todos com o respeito e acatamento devidos.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

TIJITICA, JITIRANA E TIJUPÁ


Tijitica, jitirana e tijupá são palavras que evocam minha adolescência e juventude na roça e, sobretudo, as figuras tão caras para mim do meu pai e do meu avô materno, único avô que conheci, ambos falecidos. Jitirana e tijupá são conhecidas desde a infância. Jitirana é uma trepadeira, um tipo de batata brava. Tijupá é uma edificação rústica, palhoça erguida no meio da roça. E tijitica? Bom, tijitica, um passarinho de que tomei conhecimento ao ler o conto “Abismo de rosas”, de Dalton Trevisan, entra aqui mais pelo jogo de palavras, mas não só por isso. É uma pequena ave (pequena ave é passarinho, óbvio) que – salvo engano, pois não sou ornitólogo – existe em alguns Estados do Sudeste (São Paulo, por exemplo).

Da jitirana, velha conhecida do lavrador da região, com ramas, folhas e flores muito parecidas com as da batata-de-purga, não tenho boas recordações. É muito difícil de capinar, de enxada ou de sacho (meu avô pronunciava chacho), pois suas ramas criam raízes e se pregam ao solo, gerando novos pés; seu leite enodoa a roupa e as mãos do trabalhador; e, como se não bastara, seu amontoado de ramas é o esconderijo preferido de cobras peçonhentas e não peçonhentas, como a jaracuçu, exemplo daquelas, e a jiboia, exemplo destas. A jitirana é, com efeito, tormento do agricultor da cultura de subsistência, como eram meu pai e meu avô: nasce sem semeadura, é difícil de capinar e cresce rapidamente, sufocando a cultura de arroz ou de feijão.

Já do tijupá, não: as recordações são boas. O tijupá é a sombra acolhedora, onde o trabalhador deixa a água de beber e os demais objetos. Quando não há tijupá, é necessário guardar a cabaça de água debaixo de qualquer moita, de preferência, moita de mofumbo, para que a água permaneça fria. É também o lugar da refeição, quando se almoça na roça, comum que é (pelo menos no meu tempo era) sair para a roça pela manhã e voltar somente à noite.

Lembro-me de que meu pai e meu avô (meus tios maternos também), logo após a queimada, faziam o tijupá (cada um em sua roça, claro), de madeira e palhas de babaçu, ou palhas de ubim. Seria o local de apoio na roça, desde o plantio até a colheita, bem como onde também ficariam guardados até a venda o arroz, o milho e outros produtos da lavoura colhidos.

Meu avô, o seu Zé Monteiro (José Monteiro da Silva era o seu nome completo), quando eu era criança, ficou viúvo e morava sozinho, no Canadá, zona rural de São Domingos do Araguaia. Saía para a roça bem cedinho, levando um litro de café, que tomaria frio (não era garrafa térmica) ao longo do dia, no tijupá. Depois, se casou com dona Maria, sua mulher e fiel companheira pelo resto da vida. Com o casamento, a vida dele melhorou: dona Maria fazia almoço e levava para ele, na roça, que almoçava na sombra do tijupá.

São algumas lembranças de um filho da agricultura de subsistência. Se fora filho da agropecuária, as lembranças seriam outras. O pobre e o rico da zona rural também são diferentes entre si, tanto pelo que pensam quanto pelo que defendem e vivem. Aliás, pobre vive na real acepção da palavra? Claro que não. Pobre não vive: germina, vegeta e morre.

E a tijitica? Bom... A tijitica... A tijitica persegue o pardal. Alguém duvida? Pois, seu moço, não duvide não! Já vi andorinhas que perseguem tucano. E o fazem com “expressão obscena de gozo” (tomando emprestadas aqui outras palavras de Dalton Trevisan). Meu caro leitor, vou-lhe dizer uma coisa na qual acredito piamente: "Nem sempre bandido é bandido e nem sempre polícia é polícia. Tudo depende das testemunhas e de quem é o escrivão de plantão na delegacia da História", como escreveu Affonso Romano de Sant’Anna.

quinta-feira, 16 de julho de 2009

LINHA DIRETA COM ANA MIRANDA


Sou admirador da escritora cearense Ana Miranda, cujas crônicas leio desde 1997, quando foi lançada a revista Caros Amigos, que leio e coleciono desde a edição n.º 1. Tomei conhecimento da revista, lá pelo seu terceiro ou quarto número, por meio do Celso Caciano da Silva, meu colega de trabalho no então Departamento de Apoio ao Discente (DAD), hoje Secretaria de Apoio ao Discente (SAD), do campus da Universidade Federal do Pará (UFPA) de Marabá. Éramos, ambos, acadêmicos. Ele, de Matemática; eu, de Direito.

O Celso era amigo do Robério, acadêmico de História, que lhe falou da revista. Até hoje, eu e o Robério, a quem de vez em quando vejo na banca do Edvan, somos leitores da revista. O Celso, não sei. Perdi o contato com ele, por enquanto. Creio que anda cursando pós-graduação (mestrado ou doutorado) por este Brasil afora.

Quando pego a revista, leio logo a crônica da Ana Miranda e a do frei Betto, não necessariamente nessa ordem. Depois é que leio as outras partes, como o artigo da Marilene Felinto, por exemplo. Pois bem. Hoje, como assinante, recebi o n.º 148 (julho de 2009) da revista e, após ler a crônica "O pequeno piloto", enviei a seguinte mensagem à autora, que ora compatilho com meus leitores do blog, uma das muitas vantagens e coisas boas que a tecnologia nos proporciona a todos ou, melhor dizendo, a quase todos:

"Querida Ana Miranda:

Terminei de ler sua crônica “O pequeno piloto”, publicada na revista Caros Amigos n.º 148 (julho de 2009). Belamente bela como as demais que já foram publicadas na revista ao longo dos anos. Sou leitor assíduo de suas crônicas, na Caros Amigos, que leio e coleciono desde o n.º 1, e no livro Deus-dará, que as publicou posteriormente. Gosto de todas elas, mas tenho relido inúmeras vezes “Minha biblioteca” e “O leitor”. Já perdi a conta de quantas vezes reli a crônica “Minha biblioteca”, com que me identifico muito.

Para que você tenha uma ideia, um dia, após uma das muitas releituras, chamei minha mulher, a Prof.ª Câmelha Pereira dos Santos Souza, à minha sala de estudos em casa e, cheio de entusiasmo, li para ela, bem alto, “Minha biblioteca”. Quando, emocionado, terminei a leitura, ela me disse, também muito emocionada: “Se você ler isso para mim outra vez, eu vou chorar, pois esta a segunda vez que você me lê esse texto.” Entendeu, Ana? Minha admiração pela crônica é tão grande que me fez esquecer de que já a tinha lido para ela algum tempo antes.

Ana, sou apaixonado por você, porque você é 10! Sim, você é 10 laude cum maxima, 10 com louvor! Parabéns, querida! E, como apaixonado, na acepção sadia da palavra, já falei de você nas crônicas que publico nos jornais marabaenses Correio do Tocantins e Opinião, bem como nos meus blogs (http://valdinar.zip.net, http://valdinar.blogspot.com e http://vms.uniblog.com.br). Só não li seus romances, que ainda não adquiri. Mas hei de ainda o fazer (comprar e ler). É só uma questão de tempo.

Pois bem. Hoje fiquei muito alegre porque a Caros Amigos publicou, ao pé da crônica, o seu e-mail, o que me permitiu dizer-lhe (virtual, mas diretamente), por esta mensagem, da minha admiração.

Um abraço todo especial.



Valdinar Monteiro de Souza.’. "


O meu abraço todo especial para você também, querida leitora e querido leitor, que são a razão maior do meu escrever.

segunda-feira, 6 de julho de 2009

LABILIDADE

Tornei-me emocionalmente lábil depois da cardiopatia por que fui acometido: tenho alternados estados de ânimo, com mais frequência do que se possa imaginar. Da alegria, euforia e esperança passo, sem razão aparente nem justificativa, para o desânimo, apatia e desesperança. Venho, há meses, lutando contra isso, daí o motivo de escrever esta crônica, compartilhando com o leitor minha labilidade. Há de ser útil, para mim e para ele. Quando menos, quem ainda não conhecia passará a conhecer esta acepção de duas novas palavras: lábil e labilidade. Recomendo que consulte um bom dicionário e conheça os significados que elas têm diferentes do que ora emprego. Com efeito, muita gente boa por aí é lábil e não sabe.

Sei que alguns (muitos até, quem sabe?) poderão criticar-me, tachando-me o ato de besteira, futilidade ou coisa que o valha, mas isso não importa. Não me acabrunho nem me demovo do meu intento, porque o reputo da mais alta dignidade. O que me importa é saber que, conquanto haja os que não gostam, também há os que gostam do que escrevo. É para estes e não para aqueles que o faço, com alegria renovada dia a dia, a despeito da labilidade ora denunciada. Para mim, são de valor inestimável as manifestações de carinho que recebo do leitor, seja pessoalmente, nas ruas, no trabalho e em outros ambientes, seja virtualmente, pela rede mundial de computadores. Isso me basta.

Um dia desses, conversando com um amigo, tomei conhecimento de que alguns me consideram boçal, e até chegam a discutir isso nos botecos marabaenses por aí afora. Lembrei-me do “Manifesto aos lúcidos”, que escrevi quando ainda estava na universidade. Displicuit nasus meus! (o meu nariz desagradou!)... Caramba, eu não sabia!... Fiquei momentaneamente desapontado, mas pensei logo: é assunto para escrever uma bela crônica. Nada melhor do que transformar em doce limonada os limões azedos que a vida nos oferece.

Depois, fiquei pensando sobre o assunto e acometeu-me a dúvida – e dúvida cruel – que agora compartilho com o leitor: será que os que assim pensam a meu respeito, se, em vez de falar, tivessem de escrever, escreveriam “boçal” ou “bossal”? Sei lá!... Também nem quero saber. Só aviso que (não deveria fazê-lo, mas o faço) “bossal”, com dois ss em vez de ç, até pode ser escrito, mas não existe! Salvo raríssimas exceções, quem me critica nem sequer sabe a diferença entre taxar e tachar. A crítica esposada na boa razão pode e deve ser feita, que será sempre bem-vinda; a crítica insipiente, abusada e desarrazoada, não!

É a vida. Deixemos, portanto, a vida nos levar! Se é que sou boçal ou antipático, não o sou por querer, isso posso garantir. Até me esforço por ser agradável a quem me lê e convive comigo. Sei, contudo, que (não é demais relembrar) é tolice de quem quer que seja querer agradar a todas as pessoas. Ninguém o conseguiu até hoje (nem o Cristo de Deus, que não tinha pecado algum), por que haveria eu, pecador miserável, de o conseguir? O só fato de Cristo não ter pecado já foi o suficiente para que desagradasse a muitos.

Sou homem e, por isso, um ser imperfeito. Procuro, contudo, não ser hipócrita, nem omisso, nem covarde. Também ouso, ainda que, às vezes, cansado e desanimado, cobrar meus direitos e até defender direitos alheios, o que, sem dúvida, é a fonte do desagrado de muitos dos meus opositores e desafetos, quase sempre gratuitos. Fazer o quê?... Sou advogado e aprendi no Direito Penal que, para defender meu direito ou o de outrem, quando injustamente agredido ou ameaçado de agressão, posso até matar, se preciso for, que não será crime. Diante da agressão injusta, de ninguém deve ser exigida a fuga. Ninguém está obrigado ao commodus discessus. Letra e espírito da lei, convicção do cidadão e do advogado. Azar do agressor!

sexta-feira, 26 de junho de 2009

FICOU PINEL

“Danou-se. Ficou pinel!...”, eis a frase tantas vezes ouvida por todos nós. Algumas vezes, é proferida por mera brincadeira. Outras vezes, não: é solta para expressar ira de quem a profere contra alguém que o ofendeu, importunou ou fez coisa parecida. Mas, afinal, o que é “ficar pinel”? De onde vem essa palavra hoje empregada como sinônimo de louco, doido, maluco? Vem do nome de um médico psiquiatra francês, o Dr. Philippe Pinel, nascido em 20 de abril de 1745 e falecido em 25 de outubro de 1826.

A expressão “ficar pinel”, por sinal, é dicionarizada, constando, v.g., do Novo Dicionário da Língua Portuguesa, de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, que também registra o verbo “pinelar”. Escrevi “v.g.” e, por isso, devo explicar a quem não sabe (com o sincero pedido de tolerância a quem sabe), “v.g.” é abreviatura do latim “verbi gratia” e significa “por exemplo”, da mesma forma que “e.g.” é de “exempli gratia”, também significando “por exemplo”, assim como com “i.e.” abrevia-se a expressão latina “id est”, que quer dizer “isto é”.

“Mas, afinal, o que é que tudo isso tem que ver com pinel?” – alguém pode perguntar. “Nada que ver” – respondo. É que gosto dessas particularidades da escrita que nem sempre chamam a atenção de muitos leitores e, por isso, são lidas, durante anos a fio, sem o conhecimento do que significam. Gosto de ler e saber o que estou lendo, razão por que, ao me deparar com uma palavra ou expressão desconhecida, vou logo pesquisar-lhe o significado.

A propósito, não leio dicionário somente quando estou pesquisando o significado de alguma palavra ou expressão. Quando tenho tempo, gosto de ficar horas e horas lendo dicionário. Esquisitice? Pode até ser. Penso, contudo, que não. Vejo mais como questão de gosto. Para quem gostava de ler bula de remédio (hoje não leio porque não tenho tempo), ler dicionário, conquanto seja feito com gosto, pode até ser mera consequência ou necessidade. E estou com o até hoje inexcedível Rui Barbosa, que dizia: “E se me declinam da autoridade coercitiva dos dicionários, apelo para os clássicos modernos.”

Estou falando de “ficou pinel”, porque tenho um amigo que muito gosta de usar a expressão. E sobre as abreviaturas i.e., e.g. e v.g., porque, domingo agora, dia 21 de junho de 2009, falei de tais abreviaturas e respectivos significados aos meus alunos da escola bíblica dominical, na Igreja Presbiteriana (minha denominação). Os conhecimentos aprendidos nas mais diversas disciplinas estudadas devem ser relacionados entre si, i.e., as lições de Português não devem ficar na aula de Português, como também os da aula de Matemática, de História, de Direito, de Teologia, e assim por diante.

A origem de “greve”, “sabotagem” e “sósia”, com efeito, me foi ensinada por ciências ou disciplinas diferentes. No Direito do Trabalho, aprendi que “greve” vem do nome de um logradouro francês. Da mesma língua nos vem “sabotagem”, que não se refere a calçado, mas deriva do francês “sabot”, tamanco de madeira que, insatisfeitos, os operários atiravam propositadamente na engrenagem das máquinas industriais. E “sósia”, aquele indivíduo que se parece tanto com outro, a ponto de enganar até a própria polícia? Bom, isso eu poderia ter aprendido – estudando os clássicos gregos – que vem do antropônimo “Sósia”, personagem da comédia Anfitrião, de Plauto, mas o aprendi da Medicina Legal.

Lembro-me agora de que um dia, brincando, eu disse a uma colega que não sou ginecologista, mas estudei Medicina Legal e por isso posso examinar “mulher bandida”. Chocarrices e brincadeiras à parte, o grande mestre Hélio Gomes deixou imortalizado que “o jurista deve saber tudo que lhe seja possível saber em matéria de Medicina Legal”. Caramba! Só sei que quase nada sei!

Eu disse “quase nada”. Sei, portanto, alguma coisa. A musa latrinalis não é a musa inspiradora de nenhum poeta, é outra coisa, que não vou dizer aqui. Identidade não é o mesmo que identificação: são institutos diferentes. Os himenólatras e os misimenistas se distinguem pela preferência em relação ao hímen: aqueles o idolatram, estes o menosprezam. Mas não é só isso. Tenho certeza de que jamais faria como fez um delegado a que alude Hélio Gomes: enviou ofício ao Instituto Médico-Legal pedindo que a perícia esclarecesse “se o esperma era de homem ou de mulher”. Este, sim, ficou pinel!

sábado, 6 de junho de 2009

FUMARATO DE CETOTIFENO

Olhei atentamente para a caixa de remédio que me era exibida no balcão da farmácia e vi lá, escrito abaixo do nome comercial: fumarato de cetotifeno. É o nome do fármaco ou princípio farmacologicamente ativo do medicamento, não obstante se pareça mais com expressão de baixo calão. Tentei telefonar para a pediatra (médica amiga que gostaria de homenagear aqui, citando-lhe o nome, mas deixo de fazê-lo, ante o receio de desagradar). Não consegui e, por fim, me decidi pela compra, sob garantia do balconista de que se tratava do mesmo remédio receitado, diferença apenas de nome comercial.

Faz alguns dias que isso aconteceu, mas hoje me lembrei do caso e de duas belas crônicas de Rubem Fonseca (“Exitus letalis” e “Loja de Botox a varejo”), publicadas no livro O romance morreu, e então resolvi escrever sobre o assunto. Já li e reli essas duas crônicas, que são muito interessantes. Demais disso, já tive o hábito de ler e colecionar bulas de remédio, o que, segundo confessa em “Exitus letalis”, também fazia o escritor Rubem Fonseca.


Pois bem. Com efeito, alguns leitores podem se perguntar qual seria a razão para alguém gostar de ler bulas de remédio. E, com certeza, podem existir várias razões. Eu, por exemplo, lia mais por achar admirável o estilo empregado: bulas de remédio são bem escritas. Também por achar interessante o nome do princípio ativo de cada medicamento, que quase sempre, como não poderia deixar de ser, é bem diferente das palavras comuns do cotidiano da maioria dos viventes. E, se isso já não bastasse, a gente aprende muito lendo bulas de remédio. Bulas papais também, é óbvio, mas estas são muito mais difíceis, porque escritas em Latim.


Mas não é só isso. Falando em remédio, vivo a me empanturrar diariamente com carvedilol, espironolactona e outros fármacos que sou compelido a ingerir todos os dias (e noites também), não pelo médico, mas pela vida. Como diz a Bíblia, “nem só de pão vive o homem”. É verdade. Eu que o diga! Todos os dias, tomo: captopril, uma vez; carvedilol, duas vezes; furosemida, uma vez; ácido acetilsalicílico, uma vez; digoxina, uma vez; e espironolactona, uma vez. E, nos últimos dois meses, acrescentaram-se aos já citados (que são devidos à miocardiopatia), mais dois: calcipotriol e Pill Food, receitados pelo dermatologista.

Hipocondria? Não! Não sou hipocondríaco, sou cardiopata e me pareço com uma drogaria andante. Minha rotina é começar a tomar medicamentos logo que acordo, pela manhã, e só parar, mais ou menos às 20 horas, quando tomo a última dose diária (pela hora, noturna) de Ictus, nome comercial do carvedilol. Mas isso é bom. Só toma remédios quem está vivo, conquanto esteja doente. Minha sincera gratidão a Deus porque ainda posso tomar remédios e porque estes têm surtido os efeitos desejados.

Ah, sim!... Antes que me acusem de erro, heresia ou coisa parecida, reconheço que o “nem só de pão vive o homem” foi dito (aliás, escrito) na Bíblia em outro contexto, porém, não é nenhum pecado citá-lo em abono de outro pensamento, como fiz acima. Pelo menos eu vejo assim, não sei os outros crentes.


sexta-feira, 29 de maio de 2009

O PORTE DE ARMA DO ADVOGADO: QUESTÃO DE ISONOMIA



Sempre defendi que o advogado deve ter assegurado institucionalmente o direito de, se quiser, portar arma de fogo de defesa pessoal, independentemente de qualquer ato formal de licença ou autorização. E defendo mais. O advogado deve ter, por questão de isonomia processual com os juízes de direito e membros do Ministério Público, a prerrogativa processual de ser julgado pelo tribunal de justiça do seu estado.


Já escrevi sobre isso no meu blog, em 26 de outubro de 2006, quando publiquei o artigo intitulado “Prerrogativas institucionais e processuais do advogado”, por ocasião de visita do advogado Haroldo Júnior Cunha e Silva, então candidato a presidente da Subseção da Ordem dos Advogados do Brasil de Marabá, que logrou ser eleito e atualmente exerce o mandato. Volto a escrever agora, por convicção pessoal e, principalmente, para atender ao pedido de colegas.

Pois bem. Faz-se necessário alterar o Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil (EAOAB), que é a Lei n.º 8.906, de 4 de julho de 1994, para que sejam positivadas, dentre as que já são enumeradas expressamente no artigo 7.º, duas novas prerrogativas do advogado, a primeira, institucional; a segunda, processual. São elas a prerrogativa institucional de portar arma de defesa pessoal, independentemente de qualquer ato formal de licença ou autorização, e a processual de ser processado e julgado perante o tribunal de justiça do estado.

Sou a favor de que a lei permita que as pessoas de bem, querendo, possam portar de arma de defesa. Sempre fui, porque isso é inteiramente compatível com o estado democrático de direito. O que não se deve tolerar é o porte ilegal de armas, que, infelizmente, tem incidência cada dia mais acentuada em todo o território nacional. O cidadão de bem anda desarmado, indefeso e inseguro (porque o Estado não lhe dá segurança alguma, nem em casa, nem na Igreja, nem em qualquer outro lugar), mas, como se diz popularmente, o infrator da lei anda armado até os dentes.

O Estatuto do Desarmamento (Lei n.º 10.826, de 22 de dezembro de 2003), que regula o registro, a posse e a comercialização de armas de fogo e munição, dispõe sobre o Sistema Nacional de Armas – Sinarm e faz tipificações penais (define os crimes respectivos) constitui-se em barreira inexpugnável para o cidadão de bem que pretenda comprar uma arma; o bandido, contudo, compra armas e munições com muita facilidade.


Não é desarmando as pessoas de bem ou proibindo a aquisição legal de armas de fogo que será combatida, como urge combater eficazmente, a violência. Não, não é, porque as principais causas da violência são outras. Com efeito, se tivesse sido aprovada a proibição total no referendo que foi feito há poucos anos, a violência teria aumentado ainda mais, pois assaltantes e outros infratores, que continuariam armados (como continuam e continuarão), teriam sempre a certeza absoluta de que todas as outras pessoas, com as raríssimas exceções previstas na lei, estariam desarmadas. E, assim, passariam a agir com mais audácia e sem nenhum sobrosso, sem nenhum receio, sempre certos de que não haveria resistência alguma, em face da impossibilidade material decorrente da inexistência de arma de fogo nas casas e nos locais de trabalho.

No que diz respeito ao advogado, entendo que o porte de arma é necessário e inteiramente justificado. Não só pela natureza dos serviços que presta e que, diretamente ou indiretamente, o expõem à violência de terceiros, senão também por uma questão de isonomia perante a lei e a Constituição. Não há qualquer razão para que juízes e membros do Ministério Público tenham porte de arma inerente à função e os advogados não tenham. A mesma coisa deve ser dita em relação à prerrogativa de foro ou prerrogativa processual. Ambas – a prerrogativa institucional e a processual – são asseguradas aos juízes e membros do Ministério Público nas leis respectivas (Lei Orgânica da Magistratura Nacional, Lei Orgânica do Ministério Público da União e Lei Orgânica Nacional do Ministério Público). E por que não são asseguradas, de forma isonômica, aos advogados na sua lei orgânica, o EAOAB, que é a Lei n.º 8.906?

Juízes e membros do Ministério Público têm porte de arma de defesa pessoal inerente à função, ou seja, independentemente de qualquer ato formal de licença ou autorização. O que autoriza e legaliza o porte é carteira de juiz, de procurador ou de promotor. Isso está previsto na Lei Complementar n.º 35, de 14 de março de 1979 (artigo 35, inciso V), para os juízes; na Lei Complementar n.º 75, de 20 de maio de 1993 (artigo 18, inciso I, alínea “e”), para os procuradores; e na Lei n.º 8.625, de 12 de fevereiro de 1993 (artigo 42), para os promotores. Da mesma forma deve ser para os advogados, quer sejam profissionais liberais, quer sejam advogados públicos. Por que não? Qual a razão para o tratamento diferenciado? Nenhuma. Simplesmente, não há uma razão sequer.

Quanto à prerrogativa processual está prevista nos mesmos diplomas legais. Juízes de direito e promotores de justiça são processados e julgados perante o tribunal de justiça do respectivo estado; juízes federais e procuradores, perante o tribunal regional federal respectivo.

Assim, não resta dúvida de que se faz imperiosa a alteração da Lei n.º 8.906, para assegurar o tratamento isonômico, até porque não há hierarquia nem subordinação entre advogados, magistrados e membros do Ministério Público, como diz expressamente o artigo 6.º do EAOAB. O direito de portar arma de defesa pessoal deverá estar escrito na carteira de advogado, por determinação expressa da lei federal, como está escrito na carteira de juiz e de membro do Ministério Público.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

VER A PRAÇA, OLHAR O RIO

Alguns lugares de Marabá são agradáveis, bons de se ver e estar, muito embora até possam não ostentar o requinte e o glamour dos similares em grandes centros urbanos: praças, ruas, avenidas, casas comerciais, prédios que já podem ser vistos como antigos, igrejas, escolas e outros prédios públicos. Também os tem sem similares, os rios Itacaiunas e Tocantins. Que dizer, por exemplo, da Casa da Cultura? E da arborização da escola do Serviço Social da Indústria (Sesi), cujos eflúvios são sentidos já de longe pelo transeunte das imediações?

Sem prejuízo da beleza de tantos outros, gosto da praça Duque de Caxias, da praça São Félix, das alamedas de bambus que vão se formando – a principal delas já tem nome aprovado por decreto do Poder Legislativo, que é via Manoel Machado Gonçalves (Maneco) – e da orla Sebastião Miranda, na Marabá Pioneira, que para mim é apenas Marabá, sem “Pioneira”, “Velha” ou adjetivação outra. Também das sumaúmas, ipês, jatobás, pequiás, patas-de-vaca, açaizeiros e outros habitantes ilustres da avenida VP-8 (creio que VP é de via principal), na Nova Marabá.

A VP-8 com sua arborização cada vez mais crescida traz-me sempre à lembrança o tempo em que trabalhei na Universidade Federal do Pará, de novembro de 1996 a abril de 1998. Era acadêmico de Direito e servidor do Município de Xinguara cedido à Universidade. Estudava das 14 às 18 horas e trabalhava das 18 às 22. Saía sempre por último do campus naqueles dias (aliás, naquelas noites) e, ao esperar o ônibus que me levava para casa, ficava contemplando, quase sempre muito cansado, as luzes em contraste com a escuridão da noite na imensidão da avenida. Os anos se passaram, as árvores cresceram, envelheci mais de dez anos, a VP-8 e o campus tornaram-se mais bonitos, a violência aumentou e muitas outras coisas aconteceram: naturalmente, nada é como era. Como diz a canção, “a fila anda”. Como dizia Heráclito de Éfeso, conhecido filósofo da Antiguidade, ninguém toma banho duas vezes no mesmo rio. Porque a pessoa já não será a mesma, porque as águas já serão outras. É o jogo dialético da existência, o mobilismo de todas as coisas.

Gosto de ficar na praça Duque de Caxias, principalmente ao entardecer, admirando suas mangueiras, palmeiras, ipês, oitizeiros, açaizeiros e prédios diversos (como Armazém Paraíba, Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, banca de revistas do Edvan, Loja Maçônica “Firmeza e Humanidade Marabaense”, Palacete “Augusto Dias” e outros), conversando com amigos, vendo as pessoas que passam a trabalho, estudo ou passeio, olhando jornais e revistas na banca, deixando-me entregar à paz, ao sossego e ao renovar de energias que tudo isso me transmite. Há, todavia, algo muito desagradável e prejudicial, que, há muito tempo faz por merecer o tratamento devido pelas autoridades, uma vez que atenta contra a beleza da praça e o sossego das pessoas: a poluição sonora.

Em certos momentos, a praça Duque de Caixas, como sói acontecer com vários outros pontos da cidade, se transforma em verdadeiro inferno, pelo barulho de comerciantes e flanelinhas. De um lado, os instrumentos sonoros da propaganda nefasta e desnecessária de alguns estabelecimentos comerciais, a desrespeitar (mais do que isso: torturar) o consumidor, que é o principal interessado e a razão maior da existência de todos. De outro, os aparelhos de som dos carros lavados ao lado da loja maçônica, que são ligados pelos flanelinhas em alto volume, de forma desrespeitosa, para se dizer o mínimo. Nem sequer se preocupam com os doentes renais da clínica localizada bem próximo. É o resultado macabro da combinação indigesta do abuso e desrespeito de comerciantes e flanelinhas com o descaso e a omissão das autoridades municipais e estaduais.

Triste e semelhantemente, a orla Sebastião Miranda padece do mesmo mal, sob o véu da inércia, relaxamento e omissão das autoridades de plantão, as quais ignoram a sorte e sofrimento das vítimas, que são de todas as idades: crianças tenras e indefesas, adolescentes, jovens, adultos e idosos da mais avançada idade, sadios ou doentes. O barulho ensurdecedor irrita, tortura e faz adoecer.

Um dia, talvez, alguém, alguma autoridade dentre tantas as que existem e podem fazer alguma coisa tome as providências necessárias. Um dia, talvez, as vítimas de toda a espécie despertem dessa indolência doentia que, moral e politicamente, as acomete e deixem de ser tão pacatas e caladas. Talvez, sim; talvez, não. Sei lá!... Sonho com isso, contudo. Poluição de qualquer natureza é crime e quem comete crime é criminoso. Quem sabe? Talvez um dia ainda valha o artigo 225 da Constituição Federal, segundo o qual todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, como bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida.

Gosto de ir à orla Sebastião Miranda, ao findar do dia, e, quando não há poluição sonora, ficar algum tempo para ver contemplativo a beleza do rio Tocantins, os barcos, as aves aquáticas que bailam adejando sobre as águas, a arborização característica e o concreto armado, as casas (algumas bem antigas) da avenida Marechal Deodoro, as pessoas que vão e que vêm. O horizonte, que se estende bucolicamente pela frente e pelos lados, sempre me faz pensar na floresta que aí um dia existiu e não tive a oportunidade de conhecer, bem como nas embarcações e tripulantes que, no passado não muito distante, traziam passageiros e mercadorias de Belém e de outros centros, e daqui levavam passageiros e castanha-do-pará. Calado e absorto, muitas vezes, deixo-me abandonar aos devaneios e pensamentos diversos. É como se a natureza por inteiro, ante o quedar da luz pelo morrer do sol, se aquietasse ajoelhada para conversar com Deus.