domingo, 6 de dezembro de 2009

A Desejada



Terminei de ler Odes de Anacreonte, na tradução de Almeida Cousin. Li com a devida atenção e sem abandonar inconclusa a leitura, como, impulsivamente, fizera em outras vezes. Li também A Greve do Sexo e A Revolução das Mulheres, na tradução de Mário da Gama Kury. São obras clássicas gregas. A primeira é composta de poemas (as odes gregas eram poesia para ser cantada) cuja autoria atribui-se a Anacreonte, não obstante essa autoria seja muito discutida entre os estudiosos; as duas últimas são comédias e foram escritas pelo comediógrafo Aristófanes, quatro séculos antes de Cristo.

São obras que registram – de forma crítica, linda e muito sábia – a filosofia, a mitologia, os costumes e as tradições do provo grego, assuntos pelos quais sempre nutri verdadeira paixão. A Greve do Sexo e A Revolução das Mulheres têm algumas passagens de linguagem erótica e, a depender da tradução e da visão pudibunda de quem as lê, podem até ser consideradas comédias obscenas, muito embora de obscenidade não se trate, pois combatem, com beleza singular e de forma sobremodo contundente, o preconceito contra a mulher, a guerra, a malversação do dinheiro público, a transformação do Estado em cabides de emprego, dentre outras coisas do gênero.


À guisa de exemplo (pois esse texto não é resenha), aí vai um pouco da fala de uma das personagens de A Greve do Sexo, no combate ao preconceito contra a mulher: “Vocês não crêem que eu possa dar bons conselhos à cidade? Não é crime ter nascido mulher, e o sexo não me impede de ter ideias melhores que as que andam por aí.”

Odes de Anacreonte canta, além de muitos episódios da mitologia grega, o amor sensual casto e o pervertido, a celebração da beleza e da graça feminina, o vinho e assim por diante. De rara beleza e significado mitológico, por exemplo, é a ode XX da tradução de Almeida Cousin, intitulada “A Desejada”.

Essa ode fala do abuso sexual de que foi vítima Progne, filha de Pândion, rei de Atenas, perpetrado pelo cunhado dela, Tereu, rei da Trácia e marido de Filomena, o qual, depois de abusar da cunhada, impiedosamente a encarcerou e lhe cortou a língua, para encobrir o nefando crime que cometera. Mas não trata somente disso. Expressa e canta a admiração apaixonada do poeta pela mulher a quem deseja e homenageia.


Eis o belo poema, pois vale a pena transcrever: “Em Frígia, a filha de Tântalo,/ Niobe, petrificou-se!/ E Progne, a filha de Pândion/ Em nova andorinha alou-se!/ Ah! eu, se poder tivera/ De ter mil formas e faces,/ Quisera ser teu espelho,/ A fim de que tu me olhasses!/ Quisera ser teu vestido/ A fim de que me trouxesses;/ Quisera ser água pura,/ Que o corpo a lavar lhe desses.../ Quisera tornar-me arômato,/ A fim de que mulher, te ungisse.../ Que eu fosse o véu que os teus seios,/ Cioso, a apertar, cobrisse.../ De pérola em teu pescoço,/ Que eu fosse o colar que usasse.../ Que eu fosse a tua sandália,/ E, ao menos, tu me pisasses!...”

O poema, no entanto, somente será bem entendido e apreciado por quem conhecer o significado mitológico dos versos “Em Frígia, a filha de Tântalo,/ Niobe, petrificou-se!/ E Progne, a filha de Pândion/ Em nova andorinha alou-se!”. E, conquanto o saiba e quisesse explicá-lo, deixo de fazê-lo, para não tornar a crônica muito longa. Fica, sem maldade da minha parte, para curiosidade do leitor que não o conheça. Outro dia. Quem sabe?

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