segunda-feira, 27 de outubro de 2008

APENAS PARA CONVERSAR

Como escreveu Innocêncio de Jesus Viégas (assim mesmo: com dois “n”), “é bom ser amigo de alguém e ter a satisfação de ser reconhecido como tal”. Viégas, que escreveu essas palavras (bonitas e de significado profundo) na crônica “A Sabedoria do Mendigo”, publicada no jornal maçônico O Esquadro e, depois, no livro de crônicas Contos, Cantos e Encantos, meu irmão maçom e amigo caríssimo, é membro da Academia de Letras do Distrito Federal e da Academia Maçônica de Letras do Distrito Federal. Maranhense radicado em Brasília, membro da Igreja Anglicana, também é teólogo e economista.

Pois bem. É domingo, 26 de outubro de 2008, 23h22. Acabo de jantar, após chegar da igreja (Igreja Presbiteriana do Brasil, denominação a que pertenço). Com saudade, pego o telefone e ligo para o Rev. Hideraldo Cordeiro de Melo, que foi meu pastor em Marabá e, já faz quase um ano, foi para Pacajá, cidade que, para quem porventura não sabe, também fica no Pará. Papo vai, papo vem. Notícia de lá, notícia de cá. Conversamos por mais de vinte minutos sobre assuntos diversos: família (a dele e a minha), igreja, projetos dele, minhas crônicas, meus blogs, minha saúde, enfim, sobre assuntos de amigos crentes.

Como de costume o faço, liguei apenas para conversar com o irmão, sem assunto específico. Sinto a necessidade, de vez em quando, de fazer isso. Pego o telefone e ligo (para irmãos de fé, irmãos maçons e amigos), sem assunto específico, apenas para conversar. Para mim é extremamente gratificante conversar, desinteressadamente, com meus colegas e amigos, pessoas que me são caras, pessoalmente ou por telefone. É um luxo que o telefone me permite. Tão prazeroso quanto ler um bom livro ou escrever uma crônica.

O Rev. Hideraldo, que, em Marabá, pastoreou a Igreja Presbiteriana Filadélfia durante alguns anos, é muito amigo e tem sido instrumento de Deus para me abençoar, a mim e a minha família. Os pastores evangélicos são, na medida das limitações humanas, o porto seguro dos fiéis nas necessidades mais diversas, nas horas de dor. Aliás, corrigindo minha afirmação, não sei se nas demais denominações cristãs e em outras religiões é assim, mas em igrejas evangélicas como a minha os pastores têm real proximidade com os fiéis e compartilham de suas alegrias, suas dores, problemas e necessidades. Creio que nas demais igrejas e religiões seja do mesmo jeito.

Minha mulher e meus filhos estão deitados, talvez já dormindo, parece que somente eu estou acordado. Desligo o telefone e fico, ao computador, meditando nas coisas boas da vida, nos pessoas de bem. A vida é boa, ruim é o outro, quase sempre. Existem pessoas (para mim, a maioria) que, em vez de buscar fazer o bem, gastam inutilmente a maior parte de seu tempo, quando não o tempo todo, fazendo ou pensando em fazer mal aos outros. As maiores complicações do ser humano não vêm da natureza em si, o maior problema do homem são as pessoas ruins. Mal vizinho, então?... Misericórdia! Inimigos?... Coisa do diabo! Eu que o diga, com experiência, pelos maus vizinhos e inimigos gratuitos que tenho! A Bíblia me manda orar por eles, mas, como homem de carne e osso, tenho às vezes a vontade de matá-los à bala.

Consulto livros de Direito e obras diversas da nossa literatura, permanecendo absorto por longo tempo. Quando olho a hora no computador, vejo, espantado, que já são 3h12 pelo horário brasileiro de verão, ou seja, 2h12 em Marabá. Preocupado com a hora já adiantada, vou dormir. Ah, sim!... O Viégas tinha um galo muito estimado, o Pavaroti, também carinhosamente chamado “Velho Pava”, e uma galinha, a Edith Piaf, os quais foram cruelmente mortos por uma cadela enfurecida, como Viégas chorosamente contou na crônica “Do Pavaroti e da Piaf... só saudades”. Mas isso já é outra história.

sábado, 25 de outubro de 2008

IMPUNIDADE E VIOLÊNCIA

“Só o crime se sente em segurança.” Essa frase, hoje mais verdadeira do que nunca antes, é de Rachel de Queiroz, encerrando a crônica “Os salteadores à solta na floresta urbana”, publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, de 2 de novembro de 1990, e pela Revista da Academia Brasileira de Letras (ano 90, volume 160), edição de julho a dezembro de 1990. É a penúltima frase do texto, com a qual Rachel protesta contra a violência impune dos maus a que estão submetidos os bons.

Dias depois, Abgar Renault, imortal da Academia Brasileira de Letras como Rachel, faria menção especial dessa crônica, na sessão de 21 de novembro de 1990 da Academia, dedicada à comemoração dos 80 anos de idade da autora. Ele, aliás, não apenas mencionou a crônica “Os salteadores à solta na floresta urbana”. Fez mais do que isso: ele a leu. E, do alto da sua autoridade de imortal, a classificou literariamente, dizendo “que é uma página realmente extraordinária em toda nossa literatura, embora tenha sido escrita como uma crônica”.

É fato, e contra fatos não há argumentos. Na crônica, após sumariar a insegurança que reinou em todos os sentidos nos séculos passados, Rachel de Queiroz, indignada, fala da insegurança e da violência geradas pela impunidade de nossos dias. Semelhantemente, 2.700 anos atrás (por volta de 710 antes de Cristo), como diz a Bíblia, falou o profeta Oséias: “O que prevalece é perjurar, mentir, matar, furtar e adulterar, e há arrombamentos e homicídios sobre homicídios” (Oséias 4.2).

Rachel chora o choro de todos nós, brasileiros do século XXI: “A casa do cidadão deixou de ser o seu castelo. Os transportes públicos são mais vulneráveis a ladrões e assassinos que outrora as florestas infestadas de salteadores. O assaltante vem te buscar na tua cama, na cozinha, no escritório. O recesso do lar passou a ser uma metáfora cômica. As prodigiosas invenções da ciência não nos protegem em nada. O homem anda no espaço sideral com menos risco do que tomando um ônibus na sua rua. Não há habitante de qualquer cidade que não tenha a contar suas experiências pessoais de violência, assalto, tiros, facadas, seqüestro.”

O que ela descreve é o atual cotidiano amargurado de todos: a violência que afronta, assusta, humilha e mata, perpetrada por seres indignos da classificação como humanos. Aliás, o indivíduo que, na baixeza de sua sanha cruel e imunda, assalta, estupra ou comete outros delitos da atualidade não pode ser classificado como animal irracional, pois os animais irracionais não cometem tais barbaridades.

Não faz muito tempo, a casa, como a igreja, era tida por lugar seguro, acolhedor e protetor. Prova disso era o dizer popular que já não tem sentido algum: “Em casa, na cama, ou na igreja, rezando, é que não estava.” Dizia-se isso ante a notícia de que algo ruim acontecera a alguém, querendo-se dizer que em casa e na igreja a pessoa estaria a salvo e protegida. Bons tempos aqueles! A casa, em nossos dias, já não é de fato o asilo inviolável, o recanto indevassável e protetor. Além da violência física, que dizer das escutas telefônicas clandestinas? Rachel tinha razão: “Só o crime se sente em segurança.”

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

OS ANOS CORROMPEM O SONHO

Li Saudades Mortas, de José Saney, imortal da Academia Brasileira de Letras. É um livro de poemas e sublinhei com caneta vermelha, como sempre faço, inúmeros versos, frases, orações, períodos. Faço isso já há alguns anos. Meus livros são riscados de caneta vermelha, com o que acrescento realce àquilo que me chama a atenção ou entendo ser essencial no texto que leio. De Sarney, também estou lendo os livros de crônicas Canto de Página e Sexta-feira, Folha. A crônica é o meu gênero literário preferido, e gosto de Sarney como cronista.

Uma frase que muito me chamou a atenção em Saudades Mortas foi esta: “Os anos corrompem o sonho.” É um verso do poema "A menina do retrato". Essa frase, que também é oração e período simples (lembrando aqui o trivial da Gramática: nem toda frase é oração, nem todo período é simples), tem significado profundo, dentro e fora do contexto.

Os anos têm-me corrompido os sonhos, e sonho corrompido não é sonho; pelo menos deixa de ser sonho puro em qualquer das acepções da palavra. Os anos matam os sonhos, quando não os concretizam. E muitos dos meus sonhos têm morrido, dia após dia, até porque o ser humano muda de idéia com a idade, não só porque se desilude, mas também porque amadurece. “Vaidade de vaidades, tudo é vaidade”, disse na profundeza de sua angústia, desilusão e também sabedoria, ao que tudo indica, no fim da vida, o escritor de Eclesiastes.

Triste do homem, da mulher ou, genericamente, do ser humano que já não tem sonhos vivos, para vivê-los. Ter os sonhos mortos dia após dia é também morrer com eles, pois somente na busca de realização dos sonhos é que o ser humano se encontra, vive. Daí a imensidade (imensidão, se alguém assim o prefere) dos que se perdem! Deixar de sonhar é deixar de ser humano, no mínimo, deixar de ser um ser humano normal.

Eu tenho sonhos, ainda os tenho. Mas, às vezes, me vejo entediado e desiludido com as pessoas, o discurso religioso, o discurso político, o bandido que se faz passar por autoridade com laivos de pureza e honestidade de propósitos, e que é reconhecido como tal, como autoridade. Há muito, tenho ao mesmo tempo medo e vergonha do Estado, sentimentos estes que me atormentam em duas dimensões, saber: como agente do governo e como povo. Sem hipocrisia, sem falso moralismo, mas também sem ingenuidade, sem covardia, sem papas na língua: o Brasil não é um país sério!

Estado é povo, governo e território. E, por causa disso, algumas pessoas, como é o meu caso, estão ligadas duas vezes ao mesmo tempo a esse tal monstro, tantas vezes imoral, corrupto e omisso. A ele se ligam compulsoriamente como seus habitantes e como seus agentes.

Quem, pelo menos uma vez na vida, não sentiu vergonha de ser brasileiro, diante de tantos desmandos, maldade, corrupção, imoralidade, e omissão? Só mesmo um nefelibata (também se diz nefelíbata), que nem sabe onde vive, porque está sempre no mundo da lua! O Estado brasileiro, na acepção mais ampla do termo (município, estado-membro e União) e suas instituições, também quase sempre imorais, corruptas e omissas, despertam-me, além do medo e do asco que já me são crônicos, sentimentos outros os mais primitivos.

Tenho ojeriza a essa coisa chamada Estado (povo, governo e território), porque ela é culpada, na pessoa do povo e do governo, por quase tudo de ruim que existe. Ao contrário do que ingenuamente se pensa ou hipocritamente se diz, a maioria das pessoas, governantes ou governadas, não são boas e honestas: são imorais, corruptas, covardes e omissas. Negar isso é tentar cobrir o Sol com a peneira, o que, nem é necessário dizer, é impossível.

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

ESQUECIMENTO INVOLUNTÁRIO

Pego na minha biblioteca um exemplar do livro Retalhos de Poesias, de Aziz Mutran Filho, poeta marabaense que se foi do nosso meio, deixando tristeza e saudade. Releio mais uma vez, com um misto de saudade e dor pelo sentimento da perda irreparável, a dedicatória que ele fez para mim, um dia de manhã quando cheguei à Câmara Municipal, onde trabalhávamos e ainda trabalho: “Para o ‘crânio’ desta Casa, Valdinar, meu estimado colega, com humildade. Em, 05-05-00.” Embaixo a sua rubrica.

São 23 horas de um dia qualquer da minha vida: quarta-feira, 15 de outubro de 2008, para ser mais preciso. Fico parado por algum tempo, lucubrando, pensando nas conversas que tivemos como colegas de trabalho, na admiração que ele bondosamente demonstrava pelos meus pobres artigos e crônicas, na sua inesquecível camaradagem, no seu peculiar empenho em servir, na sua hipossuficiência, na sua indisfarçável revolta pela ingratidão de muitos, pelas agruras da vida. De repente me dou conta de que esqueci o dia de seu falecimento e, por conseguinte, tenho de consultar anotações para relembrar que foi o dia 5 de março de 2003. Faz, portanto, mais de cinco anos que ele se foi e nos deixou a todos, parentes e amigos. Que coisa!

Não é ingratidão minha nem descaso, é a realidade da vida: esqueci a data da morte de Aziz porque o homem é falho, falível, imperfeito e se esquece de fatos, pessoas e acontecimentos com naturalidade. É o efeito da perecividade, que é ínsita a todo o ser vivente, a ânsia de morte que persegue o homem e o acompanha do berço à sepultura. Esquecer é também matar e morrer ao mesmo tempo: morrem por um só ato, consciente ou inconscientemente, quem esquece e quem é esquecido. E, como diz o médico e escritor Genival Veloso de França, “a morte não é um momento ou instante, mas um processo gradativo que não se sabe quando se inicia ou quando termina”.

É certo que determinados indivíduos são lembrados pela posteridade durante séculos e séculos, mas isso não é a regra. A regra é o esquecimento com o passar de poucos anos. Para ser lembrado ou, se alguém assim prefere, para não ser esquecido é indispensável fazer por deixar algo que seja mais duradouro do que a própria vida, a qual é muita curta. Nem todo dia, porém, nasce um Sócrates, ou Platão, ou Aristóteles, para não sair da Grécia Antiga; ou um Duque de Caxias, ou Rui Barbosa, para ficar em nosso arraial.

Sic transit gloria mundi! Traduzindo, para quem não sabe: “Assim passa a glória do mundo!” O comandante de hoje será o inativo sem comando de amanhã. Tudo é efêmero, tudo é passageiro, tudo é transitório. Os homens passam, os amigos e parentes os esquecem, e só as instituições ficam, mas também as instituições morrem e, mortas, desaparecem.

Aziz, como ele mesmo dizia, foi um dedicado servidor dos interesses alheios, típica escada humana, sem tempo e sem espaço para se dedicar a si mesmo. Talvez seja por isso que, macabramente, doentiamente, sempre foi um enamorado da morte, que a buscava com paixão e tinha plena consciência disso. Pobre Aziz, de tanto buscar a morte morreu cedo, tresloucadamente!

Dizem muito da sua personalidade, por exemplo, o inédito poema “Amanhã”, de outubro de 2001, e o curriculum vitae, escrito em prosa mais poética do que muitos e muitos poemas e posto à guisa de prefácio do livro Retalhos de Poesias. Analisar isso, no entanto, é outra história e, mais do que a insignificância literária desta crônica, exigiria um longo artigo acadêmico. Oxalá alunos e professores do curso de Letras da Universidade Federal do Pará ainda o façam!

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

SONHOS E COBRANÇAS

Calado, guardei, por mais de seis anos, pensando em pôr num quadro, um cartaz da Editora Vida, com uma jarra de plantas e, dentre outras palavras e expressões, os dizeres de 2 Coríntios 9.6: “O que semeia pouco, pouco também ceifará, e o que semeia com fartura, com fartura também ceifará.” E pus. Demorou, mas mandei fazer o quadro. Sou assim, gosto de pensar calado. Não sei se isso bom ou ruim. É, contudo, o meu jeito de ser. Às vezes, sem comentar com quem quer que seja, fico anos e anos pensando em fazer algo, até coisas simples, que ninguém chega a imaginar. E, quase sempre, faço. Não desisto facilmente dos meus projetos.

É indispensável, contudo, ouvir as pessoas que nos são próximas, pois nem tudo pode ser como se gosta e o que se pensa nem sempre está correto. Vem daí o ser importante e necessário externar a parentes e amigos os sonhos, projetos e coisas que se pensa em fazer, realizar. É o que tenho feito, como ironicamente se diz, “por livre e espontânea pressão”. É que minha mulher me acusava de não pensar sobre o futuro. E, como lhe respondesse que pensava sim, mas pensava calado, ela passou a exigir (com toda a razão, é claro) que lhe declinasse o que pensava sobre este ou aquele assunto. E, assim, foi ficando sabendo que, a despeito de nada haver comentado, já me ocupava do assunto x ou y, havia às vezes cerca de três, quatro ou mais anos.

Todas as pessoas normais têm sonhos: umas sonham mais, outras, menos, mas todas sonham. Sonhar faz bem, porque a vida perde o sentido se já não há sonhos. Aliás, isso me traz à lembrança o verso do poema “A menina do retrato”, de José Sarney, que diz: “Os anos corrompem o sonho.” É verdade. Alguns dos nossos sonhos são realizados, outros são corrompidos ao decorrer dos anos e fenecem, são expungidos de nós. Outros, por sua vez, descem inconclusos à sepultura com que os sonha.

Mas não é só isso. Descobri com o tempo que alguns de meus sonhos não eram, como não são, somente meus, mas também dos parentes e amigos. Isso às vezes estimula e às vezes faz correr um arrepio nos cabelos e um frio na barriga, pelo peso da responsabilidade e da cobrança que o só lembrar representa. Todos nós temos, com efeito, a obrigação de dar contas de nós mesmos aos parentes e amigos, senão também à sociedade, o que sobremaneira me incomoda e assusta.

Meus sonhos não são apenas meus, como os seus, caro leitor, não são apenas seus: são também os sonhos de outras pessoas, muitas das quais em nada ou quase nada contribuem para sua efetiva realização (algumas até atrapalham e muito). A vida é, a um só tempo, cobrar e pagar: cobra-se e cobra-se; paga-se e paga-se, e, não muito raro, ainda se morre devendo. Há cobranças justas e, portanto, devidas, mas há também cobranças injustas, indevidas, ilegais e absurdas. Pais que cobram dos filhos, filhos que cobram dos pais, cônjuges que se cobram mutuamente, amigos que cobram de amigos, sociedade que cobra até de quem nada lhe deve.

O romance O Sertanejo, de José de Alencar, que tive o prazer de ler em 1979, nos dá um exemplo expressivo desse eterno cobrar e pagar, que acabou em tragédia. O capitão Marcos Antônio Fragoso, um dos personagens, entra em guerra com outro coronel do Nordeste, o capitão-mor Gonçalo Pires Campelo, a pretexto de ter de dar contas de si aos parentes e amigos, defendendo-se de uma afronta recebida, e sofre esmagadora derrota.

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

REMINISCÊNCIAS E ROSTOS ANÔNIMOS

Movido por reminiscências que me sacodem as convicções, quero homenagear os anônimos de toda a vida, dizer do valor que eles têm. Meu pai, lavrador já falecido, gostava de citar em abono de suas idéias o ditado: “Ver e não conhecer é ruim, não saber o nome é pior.” Do outro lado do plano intelectual, o erudito juiz federal José Carlos Garcia fala do “rosto coberto do braço impessoal que decepa a cana”, no livro De Sem-rosto a Cidadão, que li em 2004, e Genival Veloso de França, médico, escritor e professor renomado, escreveu, à guisa de capítulos do seu livro Direito Médico, o “Salmo para um cadáver desconhecido” e o “Salmo para um indigente”. É o clamar de três classes a favor do anônimo e contra a teia voraz do descaso e do esquecimento.

Essas reminiscências iam e vinham nas longas reflexões a que me entreguei (ou que tomaram conta de mim) durante a recente internação no Hospital Climec a que fui submetido. Lembranças da infância, adolescência, juventude e da vida inteira até aqui. Coisas que ora me entristeciam, ora me embeveciam a alma e, nos momentos de esperança, faziam aflorar o desejo de escrever uma crônica, várias crônicas, idéia reforçada várias vezes, dia e noite, ao fecharem a porta atrás de si, nas muitas vezes em que me atenderam, as enfermeiras e zeladoras do hospital.

Quase tudo na vida é fruto da união sistemática dos esforços de pessoas diversas, não obstante, com mais freqüência do que se imagina, o agir da maioria passe despercebido e não logre jamais ter reconhecido o mérito de que é credor. Assim é no hospital, na igreja, no quartel, na fábrica, na escola, enfim, em todos os lugares e segmentos da atividade humana. É grande a multidão dos anônimos, massa informe de relegados ao esquecimento, sem-voz, sem-vez e sem-glória, a servirem de escada ou trampolim para os (bem mais poucos) poderosos.

O hospital não funcionaria se não fora o sem-número de pessoas existentes além dos médicos: enfermeiras e enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem, porteiros, atendentes, zeladores e administradores, não necessariamente nessa ordem. E essa é a regra, a valer para os outros segmentos, lugares e instituições. Não se pode esquecer, por certo, de que em todos os lugares há também pessoas ruins, desonestas, criadoras de problemas, que atendem mal e fazem de tudo para dificultar a vida do semelhante. Essas, contudo, são a praga, a erva daninha, indignas, portanto, da nossa lembrança. “O ruim por si mesmo se destrói”, já diz a sabedoria popular.

Os rostos anônimos e braços impessoais de todos os lugares, indivíduos aos quais não se conhece e de quem nem sequer se procura saber o nome, servem com bondade, zelo, amor e dedicação a toda a prova. São pessoas que, não raro, desconhecem a palavra mais-valia e abnegadamente esquecem ou relegam ao segundo plano e em proveito de terceiros, até onde lhes é possível fazê-lo, os próprios dramas do dia-a-dia e problemas pessoais.

O açúcar que adoça o cafezinho é resultado, como produto final, da cana que um dia, em algum lugar, foi plantada, depois decepada e, depois ainda, esmagada pelo mover do braço impessoal de rosto anônimo. Também o é, sem pôr nem tirar, o álcool que faz andar o carro. E assim é em relação a quase tudo na vida. Do nosso conforto, lazer e bem-estar, devemos muito mais do que imaginamos a pessoas que às vezes passam por necessidades e sofrem privações de toda a sorte neste mundo de injustiças e desigualdades a cada dia mais recrudescentes.

Este sentimento de gratidão aos muitos anônimos a quem devemos tanto da nossa vida me faz recorrer a um dentre os muitos livros da minha biblioteca, Correspondência: Linguagem & Comunicação, de Odacir Beltrão, autor que há muito se foi do nosso meio. Essa obra, publicada em 1940 e editada desde 1964 pela Editora Atlas, é de uma atualidade a toda a prova, razão por que continua como obra didática e fonte de pesquisa para estudantes e profissionais. Dela tenho dois exemplares: um da 19.ª edição, de 1995, que comprei em junho de 1996, e outro da 16.ª edição, de 1981, que, após longa procura, comprei da Traça Livraria e Sebo, agora em agosto de 2008.

É desse livro que retiro um dos trechos que já li e reli inúmeras vezes no decorrer dos anos, porque me fala à mente e ao coração. É parte da mensagem comemorativa do Dia do Comerciário, da empresa SAMRIG S.A., página 263 da 16.ª edição e página 273 da 19.ª, que diz: “moça simples... estória importante... Alguém, um dia, contará a tua estória. E dirá que, sem ti, poucas coisas seriam como são. Haveria menos sorrisos nas faces das crianças. E menos conforto dentro dos lares. Porque és o último elo entre o fabricante e a dona de casa. E da tua contribuição dependem o progresso e o bem-estar de milhões.”