quarta-feira, 4 de novembro de 2009
Nada de nada, pela palavra nada
Conquanto não tenha sido antes, mas ainda assim a propósito da passagem do Dia de Finados, trago a lume mais esta insignificância literária. As expressões “nada de nada, pela palavra nada” foram propositadamente tomadas do primeiro capítulo do livro As intermitências da morte, de José Saramago, publicado em 2005, pela Companhia das Letras, que li na internet (ah, como gostaria de já escrever internete!).
Acabo de reler a tragédia grega Antígona, de Sófocles, na tradução de Donaldo Schüler, publicada pela L&PM Editores e quis fazer uma brincadeira, pois as duas obras, As intermitências da morte e Antígona, são diferentes entre si, não só no tempo e no espaço, muito embora, por paradoxal que pareça, tenham muitos matizes em comum, coisa que não vem ao caso discutir aqui. Naquela, a intrigante ausência da morte; nesta, sua presença marcante como fruto venenoso da tirania, opressão e desatinos de Creonte, mais um usurpador do poder de Tebas.
A antiga civilização grega é apaixonante e seus clássicos são imbatíveis em tudo. Sófocles viveu de 495 a 406 antes de Cristo, mas suas tragédias, que foram citadas várias vezes por Aristóteles na Arte Retórica e na Arte Poética, por exemplo, são de atualidade a toda a prova, como se o poeta fosse nosso contemporâneo.
Sua perenidade evoca, por contraste, a efemeridade e a perecibilidade de coisas, pessoas e instituições, que deveras me incomodam. Sempre vejo com pesar o fechamento de uma casa comercial ou de outra entidade qualquer, a solução de continuidade de um empreendimento, a ruptura de um relacionamento, o malogro de esperanças. Apego-me apaixonada e obstinadamente a pessoas, coisas, lugares e instituições.
A morte, por significar separação e implicar o desaparecimento físico do ser humano, é a mais terrível das coisas terríveis. Como se ouve dizer desde a mais tenra idade, para a morte não tem jeito. Dia de Finados relembra morte e sepultamento, dor e saudade. Dar sepultura aos mortos é do direito natural e, derivado deste, do direito positivo, com implicações de caráter religioso e sociológico que se confundem com o existir do próprio homem, no oceano dos tempos.
Deixar os mortos insepultos seria antinatural, até pelas consequências mais diversas que sobreviriam aos vivos. Na mitologia grega, Creonte, o tirano de Tebas, por não permitir, à revelia do direito e da lei, o enterro do sobrinho Polínice, atraiu para si desgraças que não imaginava, dando causa à morte da sobrinha Antígona, do filho Hêmon e da mulher, Eurídice.
Elementar. O mau governante, em todos os tempos, causa males imensuráveis aos governados. Tirésias bem o diz a Creonte: “Os males desta cidade procedem de tua cabeça” (Antígona, 1015). Creonte, conquanto sabiamente advertido por Antígona, Hêmon e Tirésias, não se demoveu dos maus intentos, porque todo mau governante é turrão. “A arrogância atrai a loucura” (Antígona, 1028). Com efeito, Creonte sorveu a taça da amargura, desvalido e prisioneiro para sempre dos próprios desatinos: “Eu não sou nada, sou menos que ninguém” (Antígona, 1324-1325).
O estarrecedor de tudo isso, em pleno século XXI depois de Cristo, é que não se trata apenas de ficção e mitologia. Nos dias de hoje, como nos dias do passado recente, ou remoto, comumente faltam Tirésias, Antígonas e que tais, mas sobram Creontes nas mais variadas versões.
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