domingo, 15 de novembro de 2009

A releitura de O Rubaiyat



Acabei de reler O Rubaiyat, de Omar Khayyam, na tradução de Manuel Bandeira, obra que, dentre outras, recebi como brinde da Ediouro, em 1988 ou 1989, não sei ao certo. Na realidade, a releitura não foi de toda a obra, foi apenas da parte final, pois antes, por várias vezes, iniciara e abandonara a leitura. Desta vez, não: li a obra toda, que tem 170 pequenos poemas, todos eles, curiosamente, sem título.

São poemas filosóficos. Aliás, como ensina Manuel Bandeira, rubáyyát é o plural de rubay, que, em persa, quer dizer quadra. É gostoso de ler pelo cunho clássico de sabedoria; os versos da tradução de Bandeira, porém, não têm rima. Indisposição ou uma vontade mal-agradecida me impede momentaneamente de fazer uma análise e comentários mais profundos.

É um livro indicado pela própria editora para os cursos de Filosofia, Teologia, Sociologia, Letras, Comunicação e História e, do princípio ao fim, se caracteriza pelo agnosticismo, imediatismo e hedonismo intransigentes do poeta, que, em síntese, advoga o desapego ao saber, às coisas materiais (espirituais também), regado a bom vinho degustado na companhia de bonitas mulheres.

No poema 150, por exemplo, que é composto de duas quadras, um registro bem típico da filosofia agnóstica: “Aprendi muito, esqueci muito./ Também, e por vontade própria./ Em minha mente cada coisa/ Estava sempre em seu lugar./ Não cheguei à paz senão quando/ Tudo rejeitei com desprezo./ Compreendera enfim que é impossível/ Tanto afirmar como negar.”

E, no poema 164, esta amostra eloquente de agnosticismo mesclado de hedonismo antirreligioso: “Pobre homem, nunca saberás/ Nada; jamais explicarás/ Um só dos mistérios do mundo./ E já que as religiões prometem/ Depois da morte o Paraíso,/ Busca tu mesmo criar um/ Para teu gozo aqui na Terra,/ Pois o outro talvez não exista.”

Por fim, para mostrar a diversidade do seu pensamento, o rubay 165: “Lâmpadas que se apagam, esperanças/ Que se acendem: aurora./ Lâmpadas que se acendem, esperanças/ Que se apagaram: noite.”

Isso aí, todavia, é apenas pequena amostra do pensamento de Omar Khayyam, que, paradoxalmente, é a um só tempo lúcido e louco, altruísta e egoísta, dentre outras de suas idiossincrasias que, a meu ver, se negam e contradizem mutuamente. Paga a pena ler e reler. É clássico e deslumbrante! Eu, pelo menos, assim o vejo. Gostei! Sou advogado e prezo o contraditório, o paradoxo, as aporias.

Concluído O Rubaiyat, o próximo será Odes de Anacreonte, na tradução de Almeida Cousin, outro clássico que, há muitos anos, recebi como brinde da Ediouro e cuja leitura iniciei e parei várias vezes. Na mesma fila de leituras iniciadas e abandonadas, sem dó nem sobrosso nem justificativa que não a minha impulsividade, estão Almoço Nu, de William S. Burroughs, e Parte de Minha Alma, de Winnie Mandella.

sábado, 14 de novembro de 2009

A cor do sangue, a cor da vida, a cor da paixão



Peguei uma carona com Moacyr Scliar, na leitura cotidiana do site da Academia Brasileira de Letras e, para dar título a minha crônica, tirei do seu conto “A guerra das rosas” as expressões “a cor do sangue, a cor da vida, a cor da paixão”. Sangue é vida, vida é paixão e paixão é vida, como vida também é sangue. Pelo menos eu penso assim, pois, sonhador insensato talvez, sempre ponho, apaixonadamente, alma e coração em tudo o que faço e que vivo.

Talvez porque meu conceito de paixão seja diferente, gosto muito dessa palavra, de seus cognatos e derivados. Tenho paixão por muitas coisas, pessoas, lugares e instituições. Paixão interesseira? Às vezes sim, às vezes não. Correspondida? Às vezes sim, às vezes não. Paixão, na boa acepção, como é do meu costume dizer, se é que existe a acepção má, pois o mal está mesmo é na mente e no coração das pessoas.

Faço, a propósito, uma citação de Umberto Eco, tirada de seu artigo “A arte perdida da caligrafia”, que li na versão eletrônica da Revista Cultura, edição 28 (novembro de 2009), onde ele diz belamente: “As pessoas não viajam mais a cavalo, mas algumas fazem aulas de equitação; existem iates motorizados, mas muita gente é tão devotada à arte de velejar quanto os fenícios de três mil anos atrás; há túneis e ferrovias, mas muitos ainda apreciam caminhar a pé por passagens alpinas; há pessoas que colecionam selos na era do e-mail; e exércitos vão à guerra com rifles Kalashnikovs, mas também organizamos pacíficos torneios de esgrima.”

Isso aí tudo é, para mim, exemplo de paixão. Também de vida, de sangue e de morte. Pode haver paixão mais intensa que a que leva os homens à guerra? Pode haver mais sangue (acompanhado da morte, porque derramado, infelizmente) que na guerra? É má a paixão que faz guerrear? Haveria guerra justa? Sei lá! Depende do contexto e da perspectiva, pois, como já se disse, com sabedoria, “o mesmo cubo pode servir de pretexto para efeitos de sombra e de luz”.


Sou apaixonado pelo meu passado, pelos meus amigos e amigas, pelas coisas boas e belas da vida, dentre as quais sempre faço questão de ressaltar a mulher, a fêmea (com profundo respeito e carinho o digo). Aliás, ao pudibundo ou à pudibunda, que cora ao ler o que escrevo ou ao me ouvir dizer “fêmea”, lembro que Jesus Cristo, sem ser pecador e, muito menos ainda, o devasso presunçoso que alguém pode julgar que eu seja, disse nos Evangelhos de Mateus e de Lucas, a respeito do homem e da mulher, que Deus ou o Criador “os fez macho e fêmea”.


Tenho paixão pelo passado, meu e dos meus amigos, sem negligenciar o presente, o que, com efeito, me faz sofrer diante de frases como esta, recebida por e-mail, de uma amiga a quem sempre admirei muito: “O casamento acabou e por isso cada um deu o rumo que quis dar para sua vida.” Ele se casou novamente. Ela continua solteira, certamente por opção, pois é muito linda, elegante, inteligente, bem-educada.

Situações e decisões como essa devem ser respeitadas, notadamente por quem se diz amigo, mas não deixam de me fazer sofrer, porque me provam cruelmente a falibilidade do homem e dos seus projetos. Pode haver projeto mais lindo e mais auspicioso do que o casamento? Não, não pode. Mas, ainda assim, todos os dias casamentos se acabam e esperanças são malogradas! Por que as coisas são assim? Compreendo, mas não me conformo: nós, os humanos, a despeito da racionalidade (seria por causa dela?), somos tristemente voláteis!

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Nada de nada, pela palavra nada



Conquanto não tenha sido antes, mas ainda assim a propósito da passagem do Dia de Finados, trago a lume mais esta insignificância literária. As expressões “nada de nada, pela palavra nada” foram propositadamente tomadas do primeiro capítulo do livro As intermitências da morte, de José Saramago, publicado em 2005, pela Companhia das Letras, que li na internet (ah, como gostaria de já escrever internete!).

Acabo de reler a tragédia grega Antígona, de Sófocles, na tradução de Donaldo Schüler, publicada pela L&PM Editores e quis fazer uma brincadeira, pois as duas obras, As intermitências da morte e Antígona, são diferentes entre si, não só no tempo e no espaço, muito embora, por paradoxal que pareça, tenham muitos matizes em comum, coisa que não vem ao caso discutir aqui. Naquela, a intrigante ausência da morte; nesta, sua presença marcante como fruto venenoso da tirania, opressão e desatinos de Creonte, mais um usurpador do poder de Tebas.

A antiga civilização grega é apaixonante e seus clássicos são imbatíveis em tudo. Sófocles viveu de 495 a 406 antes de Cristo, mas suas tragédias, que foram citadas várias vezes por Aristóteles na Arte Retórica e na Arte Poética, por exemplo, são de atualidade a toda a prova, como se o poeta fosse nosso contemporâneo.

Sua perenidade evoca, por contraste, a efemeridade e a perecibilidade de coisas, pessoas e instituições, que deveras me incomodam. Sempre vejo com pesar o fechamento de uma casa comercial ou de outra entidade qualquer, a solução de continuidade de um empreendimento, a ruptura de um relacionamento, o malogro de esperanças. Apego-me apaixonada e obstinadamente a pessoas, coisas, lugares e instituições.

A morte, por significar separação e implicar o desaparecimento físico do ser humano, é a mais terrível das coisas terríveis. Como se ouve dizer desde a mais tenra idade, para a morte não tem jeito. Dia de Finados relembra morte e sepultamento, dor e saudade. Dar sepultura aos mortos é do direito natural e, derivado deste, do direito positivo, com implicações de caráter religioso e sociológico que se confundem com o existir do próprio homem, no oceano dos tempos.

Deixar os mortos insepultos seria antinatural, até pelas consequências mais diversas que sobreviriam aos vivos. Na mitologia grega, Creonte, o tirano de Tebas, por não permitir, à revelia do direito e da lei, o enterro do sobrinho Polínice, atraiu para si desgraças que não imaginava, dando causa à morte da sobrinha Antígona, do filho Hêmon e da mulher, Eurídice.

Elementar. O mau governante, em todos os tempos, causa males imensuráveis aos governados. Tirésias bem o diz a Creonte: “Os males desta cidade procedem de tua cabeça” (Antígona, 1015). Creonte, conquanto sabiamente advertido por Antígona, Hêmon e Tirésias, não se demoveu dos maus intentos, porque todo mau governante é turrão. “A arrogância atrai a loucura” (Antígona, 1028). Com efeito, Creonte sorveu a taça da amargura, desvalido e prisioneiro para sempre dos próprios desatinos: “Eu não sou nada, sou menos que ninguém” (Antígona, 1324-1325).

O estarrecedor de tudo isso, em pleno século XXI depois de Cristo, é que não se trata apenas de ficção e mitologia. Nos dias de hoje, como nos dias do passado recente, ou remoto, comumente faltam Tirésias, Antígonas e que tais, mas sobram Creontes nas mais variadas versões.