terça-feira, 14 de junho de 2011

A família do morto, ou agruras oníricas de um quase réquiem


Tudo como de costume: o caixão, a circunspecção dos presentes, a gravidade dos cumprimentos, a tristeza do coração a transparecer em cada rosto. Velório, seja de pobre ou de rico, é sempre velório. A morte não pratica a isonomia, pois iguala a todos. Pessoas entravam, pessoas saíam. Sempre circunspectas.

O ambiente sombrio, onde sobressaía a pobreza do extinto e de sua amargurada família, convidava à reflexão profunda sobre a impotência do ser vivo diante do seu inimigo maior, a morte. A perecibilidade do homem e de tudo que é vivo, ali tão concretamente materializada, fazia ecoar na mente religiosa e quase doentia do padre Arnaldo o grito solene do Pregador: “Vaidade de vaidades, vaidade de vaidades, tudo é vaidade!” (Ec 1.1).

Homem de letras, com toda a formação filosófica e teológica para se fazer padre, Arnaldo não apenas decorara o “requiem aeternam dona eis”. Não!... Via mentalmente em latim, que tanto estudara nos áureos tempos de seminário, a mesma passagem: “Vanitas vanitatum, vanitas vanitatum et omnia vanitas.” E mais outras que cortavam como lâmina afiada, dentre as quais, a parte final de Gênesis 3.19, com a terrível sentença “pulvis es et in pulverem reverteris”. As outras ele visualizava em latim, mas esta, a última, não. Fazia questão de pensá-la em português: “és pó e ao pó voltarás”.

Padre Arnaldo, estava deveras encabulado e, sem poder disfarçar isso, suava frio. Puxa vida! Como poderia ser? Estudara muito no seminário, dia e noite durante anos a fio, até ser ordenado padre e sempre se sentira preparado para o exercício sublime do sacerdócio, fosse a situação que fosse. Mas não era assim que se sentia agora, que – mal recebera a bênção da ordenação – tinha de oficiar o primeiro réquiem, encomendar a primeira alma, conforme a fé e as leis da Igreja.

Teria ele fracassado? Enganara-se de vocação? Duvidava de si mesmo? Estaria enganado na sua dúvida? E assim por diante, indagações e mais indagações lhe embotavam a mente de jovem pároco. Se fora o contrário – se, em vez de morto, o paroquiano, embora doente, ainda estivesse vivo –, ser-lhe-ia bem mais fácil: falaria da esperança de cura.

Mas não era aquele contrário, era o contrário do contrário. O homem não estava doente, o homem (aliás, o homem, não: o cadáver) estava morto, e a aí a sua desventura de jovem padre. Que dizer? Que dizer, ainda que da boca para fora? Ainda que apenas para, cumprindo a formalidade religiosa, satisfazer a ocasião? Não, ele não sabia! Sentia-se um despreparado, sem saber o que dizer à família do morto – e o que era pior – e a si mesmo.

Seu maior problema agora era este: saber o que, de fato, era o problema. Era o morto? Era a família do morto? Seria ele próprio, padre Arnaldo? No meio da mais profunda angústia de um pároco, Arnaldo, não mais se contendo, exclamou: Ai, Nossa Senhora dos Padres Desvalidos, quem me dera todo este tormento não passasse de um sonho (aliás, de um sonho, não: de um pesadelo)! Ai!... Agora ficara muito pior: falara alto e todos tinham ouvido! Tornara pública, involuntariamente, sua desventura.

Despertou, quase a suar sangue. Que alívio! Ele não era padre, era pastor, e o caso era um sonho, apenas um sonho (aliás, sonho, não: pesadelo). E recitou, de si para si mesmo, em alto e bom som, no excelente latim aprendido no seminário (não um seminário católico apostólico romano, mas seminário presbiteriano): “Memento, homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris.” Sim, isto mesmo: “Lembra-te, homem, de que és pó e ao pó tornarás”, diz a Vulgata, de São Jerônimo, Gênesis 3.19.

É mole, ou quer mais? Pastor não quer ser padre nem em sonho (sonho, não: pesadelo). E a recíproca deve ser verdadeira. Pelo sim, pelo não, Arnaldo passou o resto da noite em claro. Não queria voltar a dormir e se arriscar a sonhar novamente (aliás, sonhar, não: ter pesadelo). Pastor, como juiz, também é humano. E sonha. E também tem pesadelo. Padre também, claro!

sábado, 11 de junho de 2011

Estado de Carajás: Futuro e Esperança


"Pois é certo que haverá um futuro; e tua esperança não será aniquilada" (Provérbios 23.18), diz uma das muitas traduções da Bíblia Sagrada. Tenho de memória, já faz alguns anos, essa passagem. Também a conheço na forma de outras traduções e até de várias versões da mesma tradução. Prefiro, contudo, essa às demais, porque, salvo algum erro ou omissão involuntária, foi com essas palavras aí que ela me falou profundamente ao coração, em tribulações por que passei em dado período da minha juventude, quando a li pela primeira vez.

Muito sonhador, a despeito de não revelar os meus sonhos, tive e tenho esperança, como têm todas as pessoas normais. Esperança é uma palavra bonita e carregada de acepções. E a Bíblia fala muito de esperança, tanto da esperança na vida terrena quanto da esperança na vida futura. O apóstolo Paulo, por exemplo, escrevendo aos habitantes de Corinto (1 Coríntios 15.19), fala desses dois tipos de esperança quando diz: “Se a nossa esperança em Cristo se limita apenas a esta vida, somos os mais infelizes de todos os homens.” É bom ter esperança, mas nas duas perspectivas.

Pois bem. Nos idos anos da minha juventude, acompanhei com minha esperança a esperança das demais pessoas que trabalharam para criar o Município de Xinguara, emancipado de Conceição do Araguaia, em 13 de maio de 1982, e o Município São Geraldo do Araguaia, emancipado de Xinguara, em 1988. Eram dias de muita esperança movidos pelos ideais emancipacionistas, que eu também vivia. Os anos se passaram e a esperança de muitos (da maioria, talvez) se concretizou; a de outros, certamente, não. É assim mesmo, claro.

Agora, com minha esperança, participo da esperança dos outros na emancipação político-administrativa do Estado de Carajás. Sinto assim, mais uma vez, emanar sobre todos os eflúvios auspiciosos do ideais emancipacionistas. Vejo, como naquele passado não muito remoto, que as pessoas têm esperanças, têm expectativas.

Não sou forasteiro, nunca fui. Conquanto, honrosamente, seja filho de mãe maranhense e pai piauiense, aqui nasci e todo o tempo vivi: a primeira vez que pisei fora do solo paraense, tinha quase 23 anos de idade. Tenho, pois, o direito e, mais do que muitos outros, o dever de clamar pelo desenvolvimento da região e trabalhar por ele. Mas, ainda que nascido aqui não fora, não seria diferente. Quem aqui vive e trabalha, embora nascido em outro Estado, não deve jamais ser tachado de forasteiro.

Testemunhei a criação e tenho testemunhado o progresso de Xinguara e dos demais municípios criados de 1982 para cá. Todos se desenvolveram muito além do esperado. Não poderia deixar, portanto, de querer o mesmo para o Estado de Carajás. Quero ver e viver isso, porque, como é natural das pessoas normais, desejo o melhor para a posteridade!

Havia, lá no passado, como há, aqui no presente, a certeza de um futuro cumulada com a promessa de que a esperança não seria aniquilada. Creio (e, por crer, defendo) que a esperança humana não pode se limitar apenas à vida terrena, no presente, e tampouco apenas à vida eterna, no além. Caminhemos, pois, para um futuro que é certo, na esperança da vitória e com a certeza de que nossa esperança não será jamais aniquilada!

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Plebiscito de Criação do Estado de Carajás: População Diretamente Interessada

  
Diz a Constituição Federal de 1988 (artigo 18, parágrafo 3.º): “Os Estados podem incorporar-se entre si, subdividir-se ou desmembrar-se para se anexarem a outros, ou formarem novos Estados ou Territórios Federais, mediante aprovação da população diretamente interessada, através de plebiscito, e do Congresso Nacional, por lei complementar.” Portanto, a criação de um estado passa, necessariamente, por quatro aprovações distintas: duas do Congresso Nacional, uma da população diretamente interessada e outra do presidente da República.

A primeira aprovação é ato do Congresso Nacional, composto pelos deputados federais e senadores, e consiste na autorização do plebiscito, por decreto legislativo. A segunda, o plebiscito, é ato da população diretamente interessada. A terceira, novamente ato do Congresso Nacional, consiste na aprovação do projeto de lei complementar da criação propriamente dita, se o resultado do plebiscito foi favorável. A quarta, sanção do projeto de lei complementar aprovado, é ato do presidente da República.

Poderá, ainda, conforme o caso, haver mais uma aprovação – que, assim, será a terceira do Congresso Nacional, quinta e última do todo – o que somente ocorre se o presidente da República vetar o projeto de lei complementar de criação do estado e o Congresso Nacional rejeitar o veto. Nesse caso, a lei obrigatoriamente deverá ser promulgada pelo presidente da República ou, se este não o fizer, pelo presidente ou vice-presidente do Senado Federal, uma vez que a rejeição do veto transforma automaticamente em lei o projeto de lei vetado.

A criação do Estado de Carajás já logrou passar pela primeira das quatro aprovações, autorizada que foi a realização do plebiscito. O problema agora – que não deveria existir (e, de fato, não existe) – é saber quem é a população diretamente interessada. Por paradoxal que pareça, o problema existe, mas não existe.

O problema existe porque o Congresso Nacional, ao aprovar a Lei de Plebiscitos e Referendos (Lei n.º 9.709, de 18 de novembro de 1998), disse, no artigo 7.º, que se entende por população diretamente interessada tanto a do território que se pretende desmembrar, quanto a do que sofrerá o desmembramento.

Sempre sustentei – sem querer saber nem me preocupar com a posição de quer que seja – que esses dizeres da Lei de Plebiscitos e Referendos são inconstitucionais, pois, o constituinte, ao pôr propositadamente o advérbio “diretamente”, quis estremar, separar ou distinguir a população da área por ser desmembrada. Logo, o Congresso Nacional, ao dispor diferentemente, cometeu erro grosseiro.

Agora, consultando a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, verifiquei que o problema não existe, pois, antes que o Congresso Nacional, “data venia”, metendo os pés pelas mãos, aprovasse tais dizeres do citado artigo 7.º da Lei de Plebiscitos e Referendos, o Supremo Tribunal Federal, por várias vezes, já tinha decidido que a população diretamente interessada, na consulta popular para a criação de município, é a população da área que será desmembrada e que somente ela deverá ser chamada a votar.

O Supremo Tribunal Federal disse isso em ações diretas de inconstitucionalidade (ADI) – por exemplo, ADI n.º 733, julgada em 17 de junho de 1992; ADI n.º 478, julgada em 9 de dezembro de 1996; Medida Cautelar na ADI 1.504, julgada em 5 de dezembro de 1996 – referentes à interpretação do parágrafo 4.º do mesmo artigo 18 da Constituição Federal, na redação original, o qual trata da criação de municípios.

O que vale para a criação de município, mudando o que deva ser mudado, vale para a criação de estado. Logo, em última análise, o problema não existe. O artigo 7.º da Lei de Plebiscitos e Referendos, pelo qual toda a população do Pará deveria votar, não haverá de prevalecer, porque é contrário à Constituição Federal. Assim, embora alguns advogados e parlamentares de Belém, há tempo, venham dizendo que toda a população do Pará é quem deverá votar, isso não vai acontecer. Somente nós, da área que será desmembrada, votaremos. É assim que, interpretando juridicamente a Constituição, deverá escrever nas instruções de realização do plebiscito a Justiça Eleitoral, do jeito que o Supremo já disse.