segunda-feira, 26 de julho de 2010

Choque anafilático do organismo cibernético

Constituição Federal, aberta sobre a mesa. Olho e vejo o que está escrito: “O Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológicas. A pesquisa científica básica receberá tratamento prioritário do Estado, tendo em vista o bem público e o progresso das ciências. A pesquisa tecnológica voltar-se-á preponderantemente para a solução dos problemas brasileiros e para o desenvolvimento do sistema produtivo nacional e regional.” É o artigo 218 (do enunciado principal, que chamamos de caput, ao parágrafo segundo, que na forma jurídica escrevemos: art. 218, caput e §§ 1.º e 2.º).

Atento para a redação do texto, pois amo a linguagem jurídica, minha ferramenta de trabalho. Amo, porque é ferramenta de trabalho e porque é realmente bela, como bela em seu todo é a Língua Portuguesa. “O advogado, trabalhando, ou escreve, ou fala”, diz Eliasar Rosa, no livro Os Erros Mais Comuns nas Petições. É verdade. Daí ser muito agradável ler uma petição, uma sentença ou qualquer outra peça jurídica bem redigida, assim como assistir à falação de um profissional do Direito ou de qualquer outro segmento que vele pela linguagem escorreita.

De repente, esqueço involuntariamente os aspectos gramaticais da linguagem jurídica e deixo-me levar por lucubrações científicas e filosóficas. São hipóteses, indagações, afirmações, negações, teses, antíteses, sínteses, conjecturas e refutações, não necessariamente nessa ordem. Aliás, Conjecturas e Refutações é o título de uma das obras mais importantes de Karl Popper, sobre Filosofia da Ciência. Leitor de histórias de ficção científica, lembro-me do “choque anafilático do organismo cibernético”, do conto “O Menino e o Robô”, de Rubens Teixeira Scavone; do cérebro positrônico de Elvex, um dos robôs do conto “Sonhos de Robô”, de Isaac Asimov; do processo mesmérico de monsieur Valdemar, do conto de Edgar Allan Poe. Penso nas especulações do pós-humano, nas indagações atuais da Filosofia da Mente.

Muitos, notadamente os fanáticos religiosos, podem até dizer que isso tudo é loucura, mas não é. Não, não é loucura: é a capacidade demasiadamente fascinante de que, na perspectiva mesma da religião, Deus dotou o ser humano, homem e mulher. A ciência e a tecnologia me assustam e me fascinam na mesma intensidade, até porque enquanto se assiste boquiaberto à quase humanização dos autômatos, sofre-se cada dia mais os efeitos devastadores da prepotência, intolerância e robotização dos humanos, cada vez mais acentuadas, embora isso tudo, por si só, nada tenha que ver com ciência e tecnologia.

A Constituição Federal manda que o progresso das ciências receba tratamento prioritário do Estado e a pesquisa tecnológica, obviamente também com esse tratamento, seja voltada preponderantemente para a solução dos problemas brasileiros, vale dizer, para o bem da humanidade e para fins pacíficos. E isso tudo tem também muito que ver com ficção científica e literatura fantástica, sim. Basta lembrar que muito da realidade científica e tecnológica de hoje, no passado não muito distante, era objeto tão somente da ficção científica.

Cronicazinha chata, desenxabida?... Bom, pode até ser. Eu, contudo, já parei. Não se preocupe, por conseguinte, o leitor que se desagradou ou que, pelo menos, não gostou. Discordar e desconcordar são a mesma coisa? Eu sei, mas não vou dizer, pelo menos por enquanto. Haverá quem goste, disso não tenho dúvida. Afinal, essas foram apenas pequenas divagações e lembranças que me vieram à mente e fiz por deixar registradas.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

O Estado Brasileiro e os Direitos Sociais

Fórum do curso de especialização em Direito Constitucional. O professor propõe para debate o tema Direitos Sociais, dirigido mais especificamente para o Capítulo VII do Título VIII da Constituição Federal, capítulo e título estes que são intitulados Da Família, da Criança, do Adolescente e do Idoso, e Da Ordem Social, respectivamente.

Afirma que, pela Constituição, o Estado deveria garantir a todos, sem distinção, educação, saúde, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade, assistência aos desamparados, mas o Brasil não cumpre isso porque os recursos são poucos. E faz indagações: Como equilibrar necessidade das pessoas em efetivamente ter serviços dignos e orçamento disponível do Estado? Numa eventual demanda requerendo o fornecimento de um medicamento, por exemplo, o Poder Judiciário poderia determinar o fornecimento do medicamento pelo Estado mesmo com a alegação governamental de falta de recursos? Não teríamos uma atitude antidemocrática em que um poder estaria interferindo em outro (neste caso Judiciário versus Executivo)? E, por fim, convida para o debate. Eis, a seguir, minha participação.

“O Estado, no Brasil, é um brincalhão”, escreveu Rubem Braga, em 1958, na crônica “Um mundo de papel”. Exatamente por isso, o Poder Judiciário, não raro, entre pompas e sobrepelizes, rapapés e salamaleques de juízes e outros magistrados, se esquece de outra afirmação importantíssima trazida pelo ilustre escritor naquela mesma crônica: “Não basta despachar o papel, é preciso resolver o caso.”

O Poder Judiciário é um aparelho ideológico do Estado, como ensina Louis Althusser, na obra Ideologia e Aparelhos e Ideológicos do Estado. Aliás, Althusser, aí na mesma obra, defende a tese de que a ideologia tem uma existência real e uma existência material, o que parece muito ser a mesma coisa, mas não é, uma vez que o imaginário também é real. E, assim, pode-se dizer, sem cometer injustiça nem exagero, que por grande parcela de culpa do Poder Judiciário os direitos e garantias estabelecidos na Constituição da República são postergados, muito notadamente culpa dos tribunais superiores, os quais, com acentuada frequência, adotam em suas decisões um viés desbragadamente político, passando muito ao largo do jurídico. As decisões sobre mandado de injunção, ao longo de décadas, são exemplo disso. Com a palavra os tribunais superiores da República, para que demonstrem o contrário.

Eis aí a explicação, em parte, por que os direitos sociais, embora sejam garantias fundamentais dadas a toda a sociedade pela Constituição, são reais, mas nem sempre são materiais, para falar no linguajar althusseriano. O provimento ou efetivação dos direitos sociais, dada a sua dimensão essencial de prestações positivas do poder público, sempre esbarrou em diversos empecilhos da parte do Estado, nos Poderes Executivo e Legislativo, que para isso, quase sempre, contaram com a conivência do Poder Judiciário. Palavras e expressões como “precatórios”, “reserva do possível”, “ajustamento do socialmente desejável ao economicamente possível” e coisas que o valham têm lá a sua verdadeira razão de ser, mas ninguém poderá negar que, muito frequentemente, se prestam à negativa e à postergação de direitos sociais que poderiam muito bem ser, de plano, atendidos.

O indispensável equilíbrio entre o orçamento disponível do Estado e a necessidade de que as pessoas tenham efetivamente serviços dignos requer vontade política, real e material, de todos os Poderes da República, que redunda, indiscutivelmente, no cumprimento da Constituição e das leis em relação aos direitos sociais, sem desculpas, sofismas e expedientes quejandos, com o aporte material de recursos orçamentários e financeiros, fiscalização efetiva e combate intransigente à corrupção e aos desvios de recursos.

O Poder Judiciário pode sim (aliás, mais do que isso, deve), sem prejuízo do exame compulsório das peculiaridades de cada caso, determinar, em demandas judiciais, que o Estado forneça medicamento, mesmo diante da alegação governamental de falta de recursos, até porque essa alegação, instrumento corriqueiro da defesa, costuma muitas vezes não corresponder à verdade. E essa determinação não poderá ser tachada de atitude antidemocrática, de interferência de um poder em outro, porque será nada mais nada menos do que o cumprimento da Constituição Federal, base maior de todo o ordenamento jurídico. Chega de ver o Título VIII da Constituição como um aglomerado de normas programáticas relegadas a efetivação incerta e futura.