domingo, 20 de dezembro de 2009

De fogo é teu coração

Apreciador dos clássicos gregos, tenho mais de uma tradução de comédias e tragédias gregas como, por exemplo, da tragédia Antígona, de Sófocles, assim como tenho várias versões e traduções da Bíblia Sagrada. É agradável e muito proveitoso, mormente quando não se tem conhecimento da língua original, comparar, fundado no bom conhecimento do Português, as muitas versões e traduções de determinada obra. Traduttore, traditore, o tradutor é muitas vezes um traidor, que deturpa, voluntária ou involuntariamente, o pensamento do autor.

Aqui um exemplo. Fica, a meu ver, bem demonstrada essa importância quando comparamos a tradução da Antígona que foi feita por Donaldo Schüler com a tradução de Mário da Gama Kury, inquestionavelmente dois helenistas de peso. Um deles dois (ou até mesmo ambos) teria traído, de certo modo, o pensamento de Sófocles? Não sei. Talvez, sim; talvez, não. Qual das traduções é inteiramente fiel ou, em outras palavras, menos infiel ao original? Sei lá! Desnecessário dizer que somente a consulta ao texto original, por quem tenha sólido conhecimento do Grego, poderá responder a tais indagações com responsabilidade e segurança. Com a palavra, portanto, os helenistas, para que falem ex cathedra. Nem quero jamais ouvir o ne sutor ultra crepidam, de Apeles.

Não é meu objetivo aqui pôr ou retirar defeito desta ou daquela tradução. Quero tão somente ressaltar a importância de se conhecer, quando disponíveis, várias versões e traduções de um mesmo texto de língua estrangeira, dado o enriquecimento intelectual que isso nos traz, até porque, todos o sabemos, existem várias maneiras de se falar e escrever de forma escorreita determinada afirmação ou negação. Ambas as traduções referidas são boas e importantes. Posso afirmar, contudo, que, para mim, ressalvado o alto grau de subjetividade nessa apreciação se encerra, é mais linda e mais poética a tradução de Donaldo Schüler, não obstante a tradução de Mário da Gama Kury, que foi feita em 1970, já esteja na 15.ª edição pela Jorge Zahar Editor, do Rio de Janeiro.


À guisa de amostra, aí vai um trecho do tenso diálogo entre as irmãs Antígona e Ismene, nas duas traduções: Diz, a meu ver, com muita poesia, a tradução de Schüler: “De fogo é teu coração em atos que me gelam” – disse Ismene. “Fala, peço-te! Muito mais odiosa me serás calada. Declara tudo a todos” – dissera Antígona (Antígona, 86-88). E, sobremaneira diferente, a de Gama Kury: “Não faças isso! Denuncia-os! Se calares, se não contares minhas intenções a todos, meu ódio contra ti será maior ainda!” – disse Antígona. “Ferve o teu coração pelo que faz gelar!” – respondeu Ismene (Antígona, 95-98).

Os três versos da tradução de Donaldo Schüler se transformaram em quatro, na tradução de Mário da Gama Kury. Quem deles foi inteiramente fiel, ou menos infiel, ao original? Sei lá! Não tive acesso ao original nem tenho o suficiente conhecimento de Grego para dizê-lo. Que o digam os doutos helenistas, com a autoridade que têm sobre o assunto. Contudo, que há diferença, há; isso ninguém pode objetivamente negar. E, demais disso, conquanto lá prevaleça a objetividade e aqui a subjetividade, a tradução de Schüler é mais linda, mais poética. “De fogo é teu coração em atos que me gelam” é mais poético e mais bonito, do que “ferve o teu coração pelo que faz gelar!”, da mesma forma que “muito mais odiosa me serás calada” é mais bonito, tem mais poesia do que “se calares, meu ódio contra ti será maior ainda”. Eu acho, mas – repito – aqui estamos em seara altamente subjetiva. Vale a pena (“paga pena”, como diria Machado de Assis) apreciar as duas e mais outras traduções.

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