Concluí recentemente a leitura do livro Matar para não morrer: a morte de Euclides da Cunha e a noite sem fim de Dilermando de Assis, de Mary Del Priore (Editora Objetiva), que li em dois dias. Antes, em dezembro de 2008, eu tinha lido Matar ou morrer: o caso Euclides da Cunha, de Luiza Nagib Eluf (Editora Saraiva). Ambas as autoras são escritoras consagradas, a primeira como historiadora, a segunda como jurista.
É provável que já tenha sido dito e escrito tudo o que se deveria dizer e escrever sobre o assunto. Isso, no entanto, não me impede de também escrever despretensiosamente esta crônica, para registrar o sentimento que carreguei durante anos sobre a morte do escritor Euclides Pimenta da Cunha, assassinado pelo tenente da ativa do Exército Dilermando Cândido de Assis, como desfecho de um infeliz triângulo amoroso vivido por dois homens e uma mulher, na época em que a infidelidade feminina, muito mais do que hoje, era simplesmente inaceitável por todos os segmentos sociais e não só podia como devia ser punida com a morte.
Dilermando era amante de Ana Emília Ribeiro, mulher de Euclides, e viu-se obrigado a matá-lo, em legítima defesa própria e de seu irmão, Dinorah. Anos depois, ver-se-ia compelido, mais uma vez e pela mesma causa, a matar para não morrer. Desta vez mataria Euclides da Cunha Filho, que o agrediu e feriu gravemente à bala, na tentativa de vingar a morte do pai. Euclides da Cunha morreu em 15 de agosto de 1909. Seu filho, em 4 de julho de 1916. Mortos pelo mesmo homem, em síntese, por causa da mesma mulher. Coisa terrível, prova indelével da miserabilidade do ser humano.
Tomei conhecimento da história há anos e, a despeito de saber que a Justiça o absolveu nos dois processos, depois de dois julgamentos no primeiro e um no segundo, via com maus olhos a Dilermando de Assis, na minha visão, como na visão de milhões de pessoas, um assassino cruel, que, embora merecesse ser condenado e preso, fora absolvido e solto. Por causa disso, não assisti a toda a minissérie que, há alguns anos, a Rede Globo transmitiu sobre o episódio. Simpatizava com as vítimas, Euclides da Cunha, o marido traído e grande literato a quem sempre admirei, e seu filho, o descendente angustiado que morreu pelo pai; ao mesmo tempo, antipatizava Ana Emília, a adúltera, e Dilermando de Assis, o cruel assassino.
Ao longo de anos tive essa convicção sobre o caso, que agora mudei, após procurar compreendê-lo de forma desapaixonada. Ambos os Euclides, bem como Dilermando e Dinorah, Ana Emília e seus demais filhos foram vítimas e de todas elas a mais desventurada, se é que se pode medir suas desventuras, foi Dilermando, porque foi, fora os filhos, o último deles a morrer fisicamente, mas morreu moralmente junto com Euclides pai. Sua maior desventura foi, não obstante a sua inocência reconhecida e provada pela Justiça, ter sido estigmatizado e considerado culpado pela sociedade a vida inteira. Não morrera a morte física, mas fora assassinado moralmente.
Dilermando não morreu à época como morreram Euclides pai e Euclides filho. Foi, todavia, condenado a despeito de sua absolvição e passou todos os seus dias buscando ser compreendido. Não buscava o perdão, pois tinha a certeza de que não errara; buscava a compreensão. Logrou a absolvição jurídica, mas, incompreendido sempre por todos, sofreu injusta e desmerecida condenação moral. O Direito o soltou, mas a Moral, por equívoco talvez involuntário de poucos e voluntário de muitos, o aprisionou para sempre. Eis aí um caso que demonstra a nós todos da comunidade jurídica a diferença entre a Moral e o Direito. Dilermando foi, após a morte dos Euclides, um prisioneiro morto que apenas parecia estar vivo e ser liberto.
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