Tudo como de costume: o caixão, a circunspecção dos presentes, a gravidade dos cumprimentos, a tristeza do coração a transparecer em cada rosto. Velório, seja de pobre ou de rico, é sempre velório. A morte não pratica a isonomia, pois iguala a todos. Pessoas entravam, pessoas saíam. Sempre circunspectas.
O ambiente sombrio, onde sobressaía a pobreza do extinto e de sua amargurada família, convidava à reflexão profunda sobre a impotência do ser vivo diante do seu inimigo maior, a morte. A perecibilidade do homem e de tudo que é vivo, ali tão concretamente materializada, fazia ecoar na mente religiosa e quase doentia do padre Arnaldo o grito solene do Pregador: “Vaidade de vaidades, vaidade de vaidades, tudo é vaidade!” (Ec 1.1).
Homem de letras, com toda a formação filosófica e teológica para se fazer padre, Arnaldo não apenas decorara o “requiem aeternam dona eis”. Não!... Via mentalmente em latim, que tanto estudara nos áureos tempos de seminário, a mesma passagem: “Vanitas vanitatum, vanitas vanitatum et omnia vanitas.” E mais outras que cortavam como lâmina afiada, dentre as quais, a parte final de Gênesis 3.19, com a terrível sentença “pulvis es et in pulverem reverteris”. As outras ele visualizava em latim, mas esta, a última, não. Fazia questão de pensá-la em português: “és pó e ao pó voltarás”.
Padre Arnaldo, estava deveras encabulado e, sem poder disfarçar isso, suava frio. Puxa vida! Como poderia ser? Estudara muito no seminário, dia e noite durante anos a fio, até ser ordenado padre e sempre se sentira preparado para o exercício sublime do sacerdócio, fosse a situação que fosse. Mas não era assim que se sentia agora, que – mal recebera a bênção da ordenação – tinha de oficiar o primeiro réquiem, encomendar a primeira alma, conforme a fé e as leis da Igreja.
Teria ele fracassado? Enganara-se de vocação? Duvidava de si mesmo? Estaria enganado na sua dúvida? E assim por diante, indagações e mais indagações lhe embotavam a mente de jovem pároco. Se fora o contrário – se, em vez de morto, o paroquiano, embora doente, ainda estivesse vivo –, ser-lhe-ia bem mais fácil: falaria da esperança de cura.
Mas não era aquele contrário, era o contrário do contrário. O homem não estava doente, o homem (aliás, o homem, não: o cadáver) estava morto, e a aí a sua desventura de jovem padre. Que dizer? Que dizer, ainda que da boca para fora? Ainda que apenas para, cumprindo a formalidade religiosa, satisfazer a ocasião? Não, ele não sabia! Sentia-se um despreparado, sem saber o que dizer à família do morto – e o que era pior – e a si mesmo.
Seu maior problema agora era este: saber o que, de fato, era o problema. Era o morto? Era a família do morto? Seria ele próprio, padre Arnaldo? No meio da mais profunda angústia de um pároco, Arnaldo, não mais se contendo, exclamou: Ai, Nossa Senhora dos Padres Desvalidos, quem me dera todo este tormento não passasse de um sonho (aliás, de um sonho, não: de um pesadelo)! Ai!... Agora ficara muito pior: falara alto e todos tinham ouvido! Tornara pública, involuntariamente, sua desventura.
Despertou, quase a suar sangue. Que alívio! Ele não era padre, era pastor, e o caso era um sonho, apenas um sonho (aliás, sonho, não: pesadelo). E recitou, de si para si mesmo, em alto e bom som, no excelente latim aprendido no seminário (não um seminário católico apostólico romano, mas seminário presbiteriano): “Memento, homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris.” Sim, isto mesmo: “Lembra-te, homem, de que és pó e ao pó tornarás”, diz a Vulgata, de São Jerônimo, Gênesis 3.19.
É mole, ou quer mais? Pastor não quer ser padre nem em sonho (sonho, não: pesadelo). E a recíproca deve ser verdadeira. Pelo sim, pelo não, Arnaldo passou o resto da noite em claro. Não queria voltar a dormir e se arriscar a sonhar novamente (aliás, sonhar, não: ter pesadelo). Pastor, como juiz, também é humano. E sonha. E também tem pesadelo. Padre também, claro!
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