Conquanto ardentemente o desejasse fazer, não tenho palavras para expressar os sentimentos de que me vi possuído desde o momento em que tomei conhecimento da tragédia do Realengo, no Rio de Janeiro. Sou pai e, antes disso, sempre me incomodei sobremaneira com a injustiça, com a impunidade, com o sofrimento de pessoas inocentes e com a morte. Sempre tive um sentimento indizível de inconformismo com a morte. E mais ainda quando se trata de morte violenta ou provocada, sem antecedentes patológicos, não natural.
De tudo isso me adveio profunda angústia, agitação e perturbação de espírito, o que quase não me permitia conciliar o sono, depois de chegar da Maçonaria, na noite do dia 7 para o dia 8. Não conseguia deixar de pensar que aquelas crianças e adolescentes, vivas e cheias de sonhos na noite anterior, agora estavam mortas, sem mais nenhuma esperança, sob os adornos frios e desprovidos de qualquer enlevo dos ataúdes, por mais belos que se apresentassem, no caminho sem volta, rumo à hora mais amarga do baixar à sepultura.
Pensava nos pais, nas mães, nos irmãos de cada uma das crianças e adolescentes mortos e os imaginava, como ainda os imagino agora, sob a dor inconsolável que lhes traspassava cruentamente o coração. Doía-me sentir que deveriam, como ainda devem, estar experimentando o mais extremo sentimento de impotência. Embora distante e sem parentesco algum com qualquer das vítimas, exceto o fato de sermos todos humanos, sentia-me, como ainda me sinto, afrontado e ferido, profundamente ferido. Já perdi meu pai e um dos meus irmãos, que faleceram e, embora eles não tenham sido vítimas de morte violenta, muito me doeu e ainda dói. Já perdi a conta das vezes em que chorei ao reler a crônica que escrevi sobre o velório do meu pai. Com efeito, se é tão doído e inesquecível perder o pai, imagine-se o que é perder um filho e, sem dúvida mais ainda, quando por morte violenta ou provocada.
Por mais que fizesse por não alimentar esta ideia infeliz, não pude deixar de me ver, mais de uma vez, sentindo uma vontade terrível de estar ali, com uma arma na mão, para matar com requintes de violência e crueldade, na expressão maior do meu desejo humano de vingança, aquele infeliz agressor. Sim, eu senti vontade de matá-lo, confesso. Por mais que não quisesse alimentar tal desejo, como creio que muitos outros milhões de pessoas também o fizeram. A dor e o sofrimento do outro nos locomovem e, em situações como essa do Realengo, não há como evitar sentimentos agressivos, desejo de vingança, mais do que de justiça. Eis a verdade que muitos, hipocritamente, fazem por esconder.
Houve um momento, entretanto, em que, desprovido desses sentimentos agressivos, senti algo diferente em relação ao agressor e até senti dó do desfecho antinatural de sua efêmera e miserável existência: quando, assistindo ao noticiário, vi suas fotos de criança, de adolescente, magrinho, mirrado, como que a pedir socorro diante de algo que o afligia. Tive, sim, esta sensação. Entristeceu-me, demais disso, saber que foi criado como filho adotivo e me fez pensar, buscando uma explicação para seu ato, embora nada o justifique, tenha ele sofrido bullying ou outra forma qualquer de abuso. Seria a transmudação monstruosa da vítima em agressor? Muitas coisas podem explicar seu ato, embora nenhuma possa justificá-lo. O homem, como é frágil e miserável o ser humano!
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