domingo, 21 de novembro de 2010

Herança filológica

Tenho carinho por tudo que me lembra a pessoa, os falares e costumes do meu avô materno, José Monteiro da Silva – que, aliás, foi o único avô que conheci – e meu pai, João Belizário de Souza, ambos já falecidos. Eram homens diferentes entre si em muitos sentidos; tinham, contudo, muitas características em comum também, dentre elas o serem ambos nordestinos, naturais do Estado do Piauí, não obstante de cidades diferentes.

Paraense nascido em São Domingos do Araguaia e radicado em Marabá que até agora nem sequer viajou para lugar algum do Nordeste, tenho, por paradoxal que pareça, paixão pelo nordestino, até porque meus ancestrais, maternos e paternos, são do Nordeste (Ceará, Piauí e Maranhão). Seu linguajar, característico por palavras em si e pelo sotaque bem acentuado, sempre despertou minha atenção desde criança. Ficava embevecido ouvindo o tio Américo, marido da tia Hosana, contar histórias e mais histórias, enquanto enchia talabardões e cuidava de outros petrechos das suas tropas de burros.

A tia Hosana é irmã da minha mãe, Antônia Monteiro de Souza, e o tio Américo, marido dela, era um cearense pé-rachado, mas muito trabalhador, que chegou ao Pará através do Maranhão. Era tropeiro – chegou a ter várias tropas, de cinco burros cada uma – e atuava no transporte de cargas, de produtos da lavoura (arroz, feijão, milho e farinha) a castanha-do-pará. Muito brincalhão e contador de piadas e histórias espirituosas (às vezes pornográficas), gostava de, brincando, dizer ao meu irmão José, um ano mais novo do que eu: “Vou pegar meu revólver, arredondar seus pés de bala e lhe deixar calçando ouriço.” E eu amava ouvi-lo dizer isso com seu sotaque forte de cearense. Ah, quanta saudade do tio Américo! Ele faleceu em fevereiro de 2007, um mês após o falecimento do meu pai.

Pois bem. Recebi dos meus pais e demais parentes próximos nordestinos (minha mãe e os irmãos dela são de Pedreiras, Estado do Maranhão) rica herança filológica, a despeito de muitos deles – meus pais, por exemplo – serem analfabetos. Alegra-me sobremaneira lembrar-me de palavras do meu tempo de criança e adolescente, na zona rural, como já disse em outras crônicas. Fiel e apegado às minhas raízes, quero falar dos meus antepassados sempre com admiração e muita saudade, notadamente do meu avô e do meu pai, homens pobres e humildes dos quais tenho boas lembranças. Eles se foram deste mundo, mas estarão sempre comigo, no coração.

“Entica”, “emboança”, “semodeza” e tantas outras palavras que me lembram deles, quando nos repreendiam, a mim e meus irmãos. Eis a razão desta crônica: a saudade imensa que tomou conta de mim ao ler, na página da Academia Brasileira de Letras, a crônica “A República, filosoficamente”, de João Ubaldo Ribeiro, também nordestino. É que ele, nessa crônica, com ironia e brincadeiras, fala da sua querida Itaparica e, referindo-se ao emprego do termo “factoide”, afirma tratar-se de um “furto filológico” de que Itaparica foi vítima, pois factoide era palavra empregada já pelo padre Vieira, quando xingava os hereges nas suas prédicas da catedral.

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