terça-feira, 30 de novembro de 2010

O PODER POLÍTICO E O BEM DA COMUNIDADE

Sou um crítico ferrenho do Estado, não porque o julgue desnecessário, mas porque o considero tão necessário, que a sua omissão não pode jamais ser tolerada. A Bíblia – mas, diga-se de passagem, não somente ela – deixa bem claro que a razão de ser principal do Estado é o cuidado da comunidade. Eis por que, quando ele se omite ou negligencia de outra forma qualquer o cumprimento de suas funções, o povo padece.
O Estado incentiva a violência, quando permite a impunidade. O policial corrupto, o magistrado omisso ou injusto, o mau legislador, o administrador malversador são tão criminosos quanto o arrombador, o estuprador, o assassino e outros tipos de transgressor. Nada é mais violento do que a sentença injusta, omissa ou tardia. O juiz que absolve, quando deveria condenar, ou vice-versa, é o mais execrável dos homens, se é que como homem pode ser classificado. O advogado que, a desandar da missão impoluta da defesa, envereda pela senda imunda e malcheirosa do crime, também. O policial que, ao arrepio da razão de sua existência, sequestra, extorque, tortura ou mata, também. E que dizer dos governantes e parlamentares que, na essência, não passam de bandidos pomposamente disfarçados de autoridades?
Acabo de ler Fundamentos do direito, de Léon Duguit, livrinho que bela e significativamente discorre sobre a origem, formação, fim e funções do Estado ou, como se queira, do poder político. Exatamente agora, quando a convergência de todas as vontades, no combate aos criminosos do tráfico no Rio de Janeiro, mostrou a todos nós que o Estado, quando quer funcionar, funciona. Mas, que é o Estado? Estado é povo, governo e território. E destes, convictamente o digo, inocente é apenas o território. O povo, em quase tudo, é tão culpado quanto o governo. Aliás, governantes e governados, na expressão mais simples, são povo. Nada mais ingênuo do que pensar que o povo é o coitadinho. O povo escolhe o governo que tem e tem o governo que merece.
Há perguntas que, a despeito de tão incômodas, não querem calar. Quem suborna o agente de trânsito? Quem ultrapassa o sinal vermelho? Quem pensa que fazer o pé-de-meia, pejorativamente falando (ou seja, desviar recursos públicos), é mesmo o que deve fazer todo aquele que chega ao poder? Por que existe traficante? Quem consome o crack, a maconha, a cocaína? Quem compra o aparelho celular ou qualquer outro bem roubado? Quem é pior, o que rouba e vende ou o que compra o bem roubado? Não são igualmente criminosos os dois? Quem é, em última análise, o responsável pelos carros incendiados e demais danos à pessoa e ao patrimônio que foram perpetrados no Rio de Janeiro, nos últimos dias?
“O Estado, no Brasil, é um brincalhão”, escreveu Rubem Braga, em 1958, na crônica “Um mundo de papel”. Eu digo hoje: O Estado, no Brasil, pela sua omissão, é o maior dos criminosos. Odeio a omissão do Estado, na mesma proporção em que dela tenho medo! Mas, quem é o Estado?... Ah, sei: o Estado é o outro! Somos quase todos hipócritas, não todos! Ainda bem.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Ele, o leitor; ela, a leitora

Pela manhã, a leitura da minha crônica “Herança filológica”, no Correio do Tocantins. À tarde, após o expediente na Câmara Municipal de Marabá, a visita sempre agradável do carteiro (que já se tornou meu amigo). Correspondência, tudo de bom: impressos, malas-diretas, revistas e livros (dois de crônicas e um de contos), Diogo Mainardi, Lula é minha anta; Rubem Braga, 50 crônicas escolhidas; e Fernando Sabino, Os melhores contos. Sempre gostei dos Correios, como gosto da rede mundial de computadores. Receber, abrir e ler a correspondência – antes, só física; agora, física e virtual – é um deleite, um prazer sui generis. À noite, a releitura da crônica “O leitor”, da Ana Miranda, que li a primeira vez na revista Caros Amigos, faz alguns anos (1997 ou 1998); também a da crônica “Talvez o último desejo”, de Rachel de Queirós.

Sobre a crônica publicada no Correio, a apreciação de uma leitora muito especial, minha mulher. Os comentários do leitor, ainda quando contrários – que não foi o caso – têm um valor inestimável para quem escreve, daí o carinho que tenho pelos meus leitores. Muitos deles são amigos virtuais, moram em outros Estados (São Paulo e Rio de Janeiro, por exemplo); outros moram em Marabá e outros, ainda, moram em outras cidades paraenses e brasileiras: a mulher, colegas advogados, colegas de trabalho, irmãos de fé, membros da família maçônica (irmãos, cunhadas e sobrinhos), dentre outros segmentos. Uns leem o jornal impresso, outras leem os blogues. São eles a razão do meu escrever, o incentivo maior das minhas crônicas.

Minha homenagem sincera a você, caro leitor, caríssima leitora, tanto do jornal impresso quanto dos blogues. Não posso enumerar todos aqui, porque a lista é grande e, principalmente, porque poderia omitir involuntariamente alguns. Meu pedido de licença, portanto, para prestar esta homenagem na pessoa dos que vou citar. Leitores do jornal impresso: Carlos Rosa, irmão da vereadora Júlia Maria Ferreira Rosa Veloso; Ademar Rafael Ferreira, Wagner Spindola de Ataíde e Santino Pereira Gomes, meus irmãos de ideal maçônico; Lúcio Virgínio Ribeiro, meu irmão de fé cristã, e seu sobrinho Ismael, protéticos da Rua 5 de Abril, 1.305; Dr. Antônio Quaresma, Dr.ª Marli Fronchetti e Dr.ª Joziani Bogaz Colinetti, colegas advogados; Juliano Juks Costa Souza, contemporâneo do curso de Direito e servidor da Justiça Federal. Leitores dos blogues: Andrea Ferreira Pinheiro Carvalho, contabilista de Campinas, São Paulo; Domício Brasil, de Marabá; Prof. Gerson Pigatto, de São Paulo; Prof. Dr. Gutemberg Guerra, de Belém; Prof. Dr. Guilherme José Purvin de Figueiredo, presidente do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública (Ibap), de São Paulo; Prof.ª Luz Marina de Alcântara, de Goiânia; Rafael Porto, meu irmão de ideal maçônico, acadêmico e estagiário de Direito, do Rio de Janeiro; Rev. Hideraldo Cordeiro de Melo, pastor presbiteriano, de Macapá, meu irmão e amigo.

Esses leitores, afora muitos outros que deixei de citar, cada à sua maneira, têm-me me incentivado a viver e a escrever. Por vezes, sentindo-me cansado e desanimado, tenho sido arrebatado do meu torpor com palavras como estas do meu amigo Carlos Rosa: “Doutor, continue a escrever. Gosto de ler todos os seus artigos do jornal. Não deixe de escrever, não!”

Alguém, um dia desses – criticando-me, reservada, mas asperamente –, disse que, certamente, não vivo somente de ficção. É verdade, claro. Prova é tanto que meu gênero literário preferido é a crônica, nada mais nada menos, que realidade tratada literária e jornalisticamente ao mesmo tempo. Peço licença ao cronista amigo Abilio Pacheco, para fazer minhas estas suas palavras: “A crônica para mim ainda é um prazer que vale mais pelo texto que pelas ideias.”

domingo, 21 de novembro de 2010

Herança filológica

Tenho carinho por tudo que me lembra a pessoa, os falares e costumes do meu avô materno, José Monteiro da Silva – que, aliás, foi o único avô que conheci – e meu pai, João Belizário de Souza, ambos já falecidos. Eram homens diferentes entre si em muitos sentidos; tinham, contudo, muitas características em comum também, dentre elas o serem ambos nordestinos, naturais do Estado do Piauí, não obstante de cidades diferentes.

Paraense nascido em São Domingos do Araguaia e radicado em Marabá que até agora nem sequer viajou para lugar algum do Nordeste, tenho, por paradoxal que pareça, paixão pelo nordestino, até porque meus ancestrais, maternos e paternos, são do Nordeste (Ceará, Piauí e Maranhão). Seu linguajar, característico por palavras em si e pelo sotaque bem acentuado, sempre despertou minha atenção desde criança. Ficava embevecido ouvindo o tio Américo, marido da tia Hosana, contar histórias e mais histórias, enquanto enchia talabardões e cuidava de outros petrechos das suas tropas de burros.

A tia Hosana é irmã da minha mãe, Antônia Monteiro de Souza, e o tio Américo, marido dela, era um cearense pé-rachado, mas muito trabalhador, que chegou ao Pará através do Maranhão. Era tropeiro – chegou a ter várias tropas, de cinco burros cada uma – e atuava no transporte de cargas, de produtos da lavoura (arroz, feijão, milho e farinha) a castanha-do-pará. Muito brincalhão e contador de piadas e histórias espirituosas (às vezes pornográficas), gostava de, brincando, dizer ao meu irmão José, um ano mais novo do que eu: “Vou pegar meu revólver, arredondar seus pés de bala e lhe deixar calçando ouriço.” E eu amava ouvi-lo dizer isso com seu sotaque forte de cearense. Ah, quanta saudade do tio Américo! Ele faleceu em fevereiro de 2007, um mês após o falecimento do meu pai.

Pois bem. Recebi dos meus pais e demais parentes próximos nordestinos (minha mãe e os irmãos dela são de Pedreiras, Estado do Maranhão) rica herança filológica, a despeito de muitos deles – meus pais, por exemplo – serem analfabetos. Alegra-me sobremaneira lembrar-me de palavras do meu tempo de criança e adolescente, na zona rural, como já disse em outras crônicas. Fiel e apegado às minhas raízes, quero falar dos meus antepassados sempre com admiração e muita saudade, notadamente do meu avô e do meu pai, homens pobres e humildes dos quais tenho boas lembranças. Eles se foram deste mundo, mas estarão sempre comigo, no coração.

“Entica”, “emboança”, “semodeza” e tantas outras palavras que me lembram deles, quando nos repreendiam, a mim e meus irmãos. Eis a razão desta crônica: a saudade imensa que tomou conta de mim ao ler, na página da Academia Brasileira de Letras, a crônica “A República, filosoficamente”, de João Ubaldo Ribeiro, também nordestino. É que ele, nessa crônica, com ironia e brincadeiras, fala da sua querida Itaparica e, referindo-se ao emprego do termo “factoide”, afirma tratar-se de um “furto filológico” de que Itaparica foi vítima, pois factoide era palavra empregada já pelo padre Vieira, quando xingava os hereges nas suas prédicas da catedral.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Encabulado, aliás, quase...

O salmista Asafe diz, no versículo 2 do Salmo 73, que quase se lhe resvalaram os pés e, por pouco, não se lhe desviaram os passos. Aliás, vou transcrever. Na edição revista e atualizada no Brasil da tradução de João Ferreira de Almeida, ele diz exatamente: “Quanto a mim, porém, quase me resvalaram os pés; pouco faltou para que se desviassem meus passos.” E, em seguida, confessa o porquê do seu escândalo ou quase fraquejar: a prosperidade dos ímpios.

Não sou salmista na acepção bíblica nem meu nome é Asafe: sou um crentinho fracote, um cronista de meia-tigela e meu nome é Valdinar. Confesso, contudo, que, muitas vezes, quase se me têm resvalado os pés e, por muito pouco, não se têm desviado meus passos em muitos sentidos. Sinto-me, quase sempre, na contramão. Vou dizer por quê. Dentre outras idiossincrasias ou anormalidades, eu tenho medo dos donos da verdade, eu me sinto profundamente incomodado com a santidade dos crentões e santarrões da minha denominação e das outras denominações também, eu leio a revista Veja, eu gosto das crônicas dos colunistas Diogo Mainardi e Lya Luft, eu assisto, às vezes, a telenovelas da tevê Globo.

Lógico que não gosto de ler as reportagens políticas da Veja, aliás, nem as leio. Não as leio na Veja nem na internet nem em qualquer outro veículo ou meio de comunicação. Vou confessar uma verdade (talvez para vergonha do meu leitor e profunda indignação, vontade de me linchar, ou mesmo quase suicídio de alguns intelectuais meus conhecidos): tenho o orgulho de, por exemplo, não ter ficado sabendo ao longo de toda a campanha, e até hoje ainda não saber, o nome do candidato a vice-presidente da República e agora vice-presidente eleito na chapa da Dilma Rousseff, e de ter ficado sabendo por mero acaso o nome do vice-presidente na chapa de José Serra. Só peço aos meus leitores que não me abandonem por isso.

Tenho amigos sinceros que não gostam da Veja e muito menos do Diogo Mainardi. Um deles, colega do curso de Direito, a quem muito estimo, me disse uma vez, muito zangado, que não aceita o absurdo de Mainardi publicar um livro de crônicas intitulado Lula é minha anta. E disparou, sério: “Que que é isso? Com o presidente da República, rapaz?... Não, é demais!” Mesmo assim, eu disse a ele, na mesma hora, que gosto de quase todas as crônicas de Mainardi. Gosto, sim. Mas eu também gosto das crônicas do imortal da Academia Brasileira de Letras José Sarney, embora não goste do político. Como políticos, não gosto de Jader Barbalho nem de Sarney e tampouco de Ana Júlia, ou de Jatene, para citar apenas alguns nomes.

Quando penso que quase a metade do eleitorado paraense votou em Jader Barbalho para senador da República, fico realmente atormentado e sem saber o que dizer. E o que dizer dos que votaram no Tiririca? Sem palavras, sinceramente, meu caro leitor! Vejo, quase amedrontado até, que sou mesmo um anormal, moral e politicamente falando. Estou, quase sempre, na contramão, discordando da maioria. Tomara que você esteja comigo! Não entendo os brasileiros, assim como não entendo muitas e muitas coisas. Ainda bem! É bom mesmo não saber de certas coisas e situações, como fez o presidente Lula.

Diogo Mainardi, na crônica “Com Dilma, o PT chega em quinto”, publicada na edição 2.191 de Veja, diz sabiamente: “Quem compreende a mente e o comportamento dos brasileiros é Valdemar Costa Neto. Quem compreende a mente e o comportamento dos brasileiros é a Mulher Melancia. Quem compreende a mente e o comportamento dos brasileiros é Chico Buarque. Eles sabem o que os brasileiros querem.” Concordo plenamente. Acrescentaria, no entanto, Paulo Rocha, Jader Barbalho, José Roberto Arruda, João Paulo Cunha, José Sarney, José Dirceu e, enfim, uma lista enorme, que não dá para enumerar. Encabulado, eu? Quase. Mas não estou nem aí para a maioria, embora tenha medo dela. Paradoxo? É mesmo?... Sei lá!

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Orelhas de cão vadio e devido processo legal

Gosto de ler, de vez em quando, versões da Bíblia em inglês e em latim, embora não seja versado nessas línguas. Tenho duas Bíblias em inglês e, na internet, há boas versões latinas, inglesas e de várias outras línguas. Também tenho versões inglesas do Código Civil Brasileiro e da Constituição Federal. É que gosto de comparar versões de uma mesma língua, bem como versões estrangeiras entre si, seja da Bíblia, de clássicos gregos ou de qualquer outra obra. Acho agradável e proveitoso fazer isso. E gosto – como se diz – não se discute. Sem problemas. Nada tenho, portanto, contra quem não gosta.

Pois bem. Andei lendo hoje a Nova Vulgata Bibliorum Sacrorum Editio, versão latina que muito aprecio, e resolvi registrar em crônica, porque as passagens lidas representam regras para um bom relacionamento intersubjetivo e, ainda, princípios do Direito moderno.

Comecei ler pelo versículo 17 do capítulo 26 do livro de Provérbios, Liber Proverbiorum, porque citei em português na crônica anterior, “A utilidade do direito e de seu profissional”, essa passagem bíblica, que na versão latina em questão diz: “Apprehendit auribus canem, qui transiens commiscetur rixae alterius.” Como regra de comportamento, a Bíblia diz aí que quem se mete em conversa alheia é como quem toma um cão qualquer pelas orelhas. Ora, pegar um cão desconhecido pela orelha é se expor a perigo previsível, qual seja, a possibilidade de uma ou várias mordidas violentas e de contaminação pelo vírus da raiva canina. Expõe-se, portanto, a desavenças e atrai complicações para si todo aquele que se intromete em discussão dos outros.

Como regra de comportamento, essa aí me fez lembrar de outra contida no mesmo livro de Provérbios, o versículo 13 do capítulo 18, que diz: “Qui prius respondet quam audiat, stultitia est ei et contumelia.” Sabedoria em palavras simples: para responder, é preciso ouvir! “Quem responde antes de ouvir comete estultícia para sua vergonha”, é isso, em tradução livre, que a Bíblia está dizendo. Simples demais, porém indispensável: primeiro ouvir, depois, se necessário, responder correta e seguramente, sem escorregões nem atropelos.

Com o sincero pedido de desculpas a quem não gosta de latim ou de língua estrangeira, mais um versículo também em latim – porque da versão latina estou tratando. É uma passagem bíblica que, como advogado, tenho citado muitas vezes (capítulo 7, versículo 51, do Evangelho Segundo João, Evangelium Secundum Ioannem): “Numquid lex nostra iudicat hominem, nisi audierit ab ipso prius et cognoverit quid faciat?” Foi a célebre pergunta feita a respeito de Jesus Cristo pelo doutor da lei Nicodemos, assim traduzida na edição contemporânea da tradução de João Ferreira de Almeida: “Condena a nossa lei alguém sem primeiro ouvi-lo para descobrir o que faz?” É a exigência bíblica, sem tirar nem pôr, do devido processo legal e do contraditório. Ninguém pode ser condenado sem antes ser ouvido em processo regularmente instaurado, instruído e julgado. Está na Bíblia também, não é só na Constituição da República Federativa do Brasil.

Conclusões à luz da Bíblia. Não se intrometer na discussão dos outros é uma boa receita para evitar prejuízos e dissabores. Há, todavia, quem gosta de entrar em conversa para a qual não foi chamado, como há, no outro extremo, quem gosta de envolver os outros nas próprias confusões. Tanto um tipo quanto o outro são detestáveis e devem ser evitados. Mas existem, ainda, os que exaram decisões injustas ou criam involuntariamente situações embaraçosas para si e para os outros, pela negligência de não seguirem a regra de ouro das relações intersubjetivas: só responder depois de ouvir.

sábado, 13 de novembro de 2010

A Utilidade do Direito e de seu Profissional

Andando pela Praça Duque de Caxias, logo após terminar meu expediente na Câmara Municipal, passei por duas mulheres jovens que, em frente à Inspetoria Litúrgica do Supremo Conselho da Maçonaria, conversavam entre si sobre não sei o quê. Pude, contudo, ouvir nitidamente quando uma delas disse para a outra: “A mesma coisa é direito, curso de advogado: não tem utilidade nenhuma para as pessoas.” Passei calado, é óbvio, até porque elas não sabiam que sou advogado. Demais disso, diz a Bíblia (Provérbios, capítulo 26, versículo 17): “O que, passando, se mete em questão alheia, é como aquele que toma um cão pelas orelhas.” Fiquei, todavia, pensando nos equívocos e preconceitos dessa afirmação da moça (dita, a seu ver, com laivos de sabedoria). Puxa vida, são tantos, que o espaço de uma crônica é muito pequeno para dissecá-los! Darei aqui, no entanto, umas pinceladas de leve.

Para inicio da conversa, curso de Direito não é curso de advogado, pois Advocacia não é formação acadêmica, é profissão jurídica, como profissão jurídica também é, por exemplo, a Magistratura. Ninguém vai para a faculdade estudar Advocacia, vai-se estudar o Direito. Quem conclui o bacharelado em Direito – também chamado de bacharelado em Ciências Jurídicas e Sociais – não é advogado; advogado é somente o bacharel em Direito que, após ser aprovado no exame de ordem, é inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil. É bom que se diga, entretanto, que essa confusão do leigo não se dá por acaso, sua razão de ser é a importância do advogado entre os diversos profissionais do Direito (juízes, promotores, delegados e assim por diante). Partindo desse raciocínio, um a zero para os advogados.

Outra coisa. Onde houver sociedade, onde houver gente, haverá regras de comportamento, ou seja, haverá necessariamente o Direito. Como ensina Antonio Junho Anastasia, na apresentação do livro Técnica Legislativa, de Kildare Gonçalves Carvalho, “é a norma jurídica que impõe os padrões normativos de conduta humana, permitindo o convívio entre os homens”. Logo, o curso de Direito em si e todos os profissionais do Direito – não só os advogados – têm sim muita utilidade para as pessoas. Não é sem razão que, no seu artigo 133, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, a mais democrática das constituições brasileiras, diz que “o advogado é indispensável à administração da justiça”. Sem advogado, não se faz justiça. E o anseio por justiça vem de Deus. “Não há justiça sem Deus”, já deixou imortalizado Rui Barbosa, na Oração aos Moços.

“A lei é dura, mas é lei”, diz a máxima bem conhecida e ora invocada com boas, ora com más intenções. É verdade, a lei é dura, mas é lei. Existem, contudo, leis boas e leis ruins, umas feitas com boas intenções, as outras, com más intenções. E, se não bastasse disso tudo, a lei nem sempre coincide com a vontade do legislador, uma vez que, não muito raramente, por desconhecimento ou até inobservância voluntária da técnica legislativa, o legislador pensa em escrever uma coisa e acaba escrevendo algo diverso ou mesmo oposto do que desejava. Isso acontece muito mais do que o leigo pode imaginar, infelizmente, nos casos de boa intenção e felizmente, nos demais casos. Logo, não pode nem deve jamais prevalecer toda e qualquer lei, simplesmente por ser lei. Os romanos já diziam que nem tudo que é legal é também moral. Quase todo o mundo sabe disso, não é privilégio só dos profissionais do Direito.

Mas não é só isso. A lei é fruto da técnica jurídica e fonte direta ou imediata do Direito, conquanto não se confunda necessariamente com ele, da mesma forma que o direito não se confunde com a justiça. Lei é lei, direito é direito, justiça é justiça, não necessariamente nessa ordem. A técnica jurídica se divide em técnica legislativa, que é a arte de fazer a lei, e hermenêutica, que é a técnica de interpretá-la e aplicá-la. Aprender o Direito não é decorar o texto da lei, saber a lei não é decorar-lhe as palavras, como ingenuamente muitos pensam e alguns, mais do que isso, preconceituosamente o dizem. Decorar a lei qualquer um pode, mas para interpretá-la e aplicá-la é necessário ser um profissional, acadêmica e legalmente habilitado. É por isso que existem os profissionais do Direito e o advogado é indispensável para a administração da justiça.

Bona est lex, si quis ea legitime utatur” (“boa é a lei, se alguém a utiliza legitimamente”), ou seja, se a aplica com retidão. Isso, aliás, é bíblico e tem, por isso, valor incalculável para os cristãos. É uma redução do versículo 8 do capítulo 1 da Primeira Epístola de Paulo a Timóteo, em latim: “Scimus autem quia bona est lex, si quis ea legitime utatur” (Epistula I ad Timotheum, I.VIII). É isso. Tenho orgulho de ser advogado, porque sei da nossa utilidade para o bom convívio entre os homens (e as mulheres também, claro).