quarta-feira, 22 de julho de 2009

ELA, A BULA DE REMÉDIO

É incrível! Já disse, em outras crônicas, que gostava de ler bula de remédio. E é verdade, lia mesmo. Comecei a fazê-lo ainda adolescente, a pedido do meu pai ou da minha mãe, ambos analfabetos, para saber as indicações e, principalmente, a posologia. Posteriormente, passei a ler bulas por simplesmente gostar, ainda que isso possa parecer incrível para muita gente, mormente os inimigos da leitura de qualquer tipo de texto. Mas, como disse antes, eu lia, não leio mais (por falta de tempo, principalmente). E estou, contudo, cada vez mais inclinado a voltar a ler, por causa das descobertas que tenho feito.

Hoje me vi tentado a escrever novamente sobre o assunto e peço vênia ao leitor, a quem respeito e não quero desagradar. Que isso, portanto, me seja permitido. É que eu não sabia de outras pessoas com o mesmo hábito, mas de vez em quando as tenho descoberto. E o mais importante de cada descoberta é ver, com alegria, que os outros leitores de bula de remédio, ao contrário de mim, são pessoas importantes, são escritores ilustres da estirpe de Carlos Heitor Cony e Rubem Fonseca, por exemplo.

Caramba! É legal demais! Não estou sozinho e, como se isso não bastara, estou, em tal costume, ladeado por sumidades da intelectualidade brasileira. Posso, por conseguinte, parodiando o soldado Chespirito, personagem de um episódio do Chaves, dizer: “Ah, dileto leitor, é honra demais para eles!” Brincadeira, lógico. Mas, é verdade, gosto de assistir aos programas do Chaves. Sempre gostei. Por causa, certamente, da pobreza de ambos, a dele e a minha.

Voltemos, contudo, à bula. O que hoje despertou sobremaneira minha atenção e me fez voltar ao assunto foi o motivo por que o mestre Cony, imortal da Academia Brasileira de Letras, lê bula de remédio: não é para saber as indicações nem a posologia, é para se sentir humilhado, para relembrar que, diante da linguagem da bula, ele, como os demais mortais, não está com nada. Confira, pois, o leitor a simpatia, ironia e sagacidade da crítica: “Quando sofro um assomo de sabedoria e me considero razoavelmente informado, costumo ler bulas de remédio para sentir a humilhação de não entender nada do que estou lendo” (Carlos Heitor Cony, na crônica “O morfema”).

É. Ela, a bula de remédio, tem muito mais serventias do que pensamos nós, os mortais comuns, algumas delas, com efeito, serventias aqui inconfessáveis. Não há jeito que dê jeito. Vou voltar a ler bulas de remédio, a começar pelas de ácido acetilsalicílico, captopril, carvedilol, digoxina, espirololactona e furosemida, que tomo diariamente por causa do coração. Não posso deixar de fazer isso. Preciso ficar mais humilde, me sentir mais humilhado.

Ih!... Já sei. Você achou remédio demais? Pois, seu moço, não pense isso não! Falei apenas das minhas drogas de uso diário (impostas pela cardiopatia, não pelo cardiologista), mas existem muitas outras que, aqui e acolá, ando tomando por outras indicações médicas. Não mencionei, verbi gratia, as do reumatismo. Deixemos isso. Chega. Basta dizer que sou, pelo conteúdo, uma drogaria semovente. E preciso voltar a ler bula de remédio, por gosto literário, para me sentir humilhado e, principalmente, por uma questão de sobrevivência.

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